Empregado será indenizado por ter sido obrigado a participar de roda de oração

Empregado será indenizado por ter sido obrigado a participar de roda de oração

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

A juíza da 2ª Vara do Trabalho de Campo Grande/MS condenou uma empresa da área de material de construção a indenizar um ex-funcionário em R$5.000,00 por impor, de forma velada, a participação em orações diárias antes do expediente.

A obrigação, mesmo que velada, na participação de orações, foi considerada uma prática de intolerância religiosa, ferindo direitos básicos do trabalhador, como o direito de liberdade religiosa.

Intolerância religiosa

A reclamação trabalhista ajuizada pelo ex-funcionário apontava várias irregularidades no contrato de trabalho, incluindo acúmulo de funções, horas extras não pagas e danos morais.

Cultura organizacional

Entre os pedidos feitos, destacou que o obrigavam a chegar antes do horário combinado para participar de rodas de oração.

A empresa argumentou que as orações faziam parte da cultura organizacional e que a participação dos funcionários não era compulsória.

O preposto da empresa relatou que “oração faz todos os dias, chega, bate o ponto, reza o Pai-Nosso, agradece; todos participam; todos os dias tem oração, é uma “coisa” que tem na cultura; não existe questionamento sobre oração, na contratação falam se tem alguma coisa contra, ninguém é obrigado a participar; ninguém deixou de participar, ninguém se importa; reclamante nunca se negou, ele nunca fez a oração, mas sempre participava”.

Ocorre que, conforme ficou comprovado nos autos, a prática era recorrente e que nenhum funcionário se recusava a participar. Isso levou à conclusão de que havia, de fato, uma imposição velada.

Uma das testemunhas foi incisiva:

“Todos participavam das orações, tinha que fazer; não foi consultado se tinha interesse de participar ou não da oração; sempre participou; era complicado não participar, era protocolo deles; nenhum funcionário chegou a não participar; quando foi contratado não foi informado da oração; reuniões diárias eram de treinamento, oração; tinha gente que não era da mesma crença e tinha que participar; sempre oração como se fosse católica ou cristã, sempre a oração Pai-Nosso”.

Na sentença, a magistrada pontuou que a liberdade de crença é um direito assegurado pela Constituição Federal. Ela também destacou que o empregador tem o dever de proporcionar um ambiente de trabalho livre de práticas discriminatórias ou de intolerância.

"A Constituição assegura a liberdade de consciência e o livre exercício de cultos religiosos, sendo obrigação do empregador zelar por um ambiente de trabalho sem práticas discriminatórias"

Também serviu de fundamento para a condenação a reiterada jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 9º Região, que reconhece a imposição de práticas religiosas no ambiente corporativo como conduta passível de indenização por danos morais.

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Análise jurídica

Liberdade religiosa

O direito à liberdade de crença, religião e de expressão decorre da proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, conforme preceitua o art. 1º, III, da CF/88).

CF/88

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

...

III - a dignidade da pessoa humana;

Nessa toada, a Carta Magna assegura, também, a liberdade de consciência e livre exercício de cultos religiosos (art. 5º, inciso IV, da CF), bem como o exercício do direito à livre expressão religiosa, filosófica ou política (art. 5º, inciso VIII, da CF).

CF/88

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

...

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Esses mesmos direitos e garantias estão, igualmente, albergados tanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose de Costa Rica) quanto na Convenção 111 da OIT, ambas ratificadas pelo Brasil.

O empregador tem o dever de garantir um ambiente de trabalho digno, salubre, seguro e não discriminatório, o que inclui o respeito à liberdade religiosa e de crença.

O dever do empregador, portanto, se estende na adoção de providências que impeçam condutas capazes de afetar esses direitos, além de reprimir e não se omitir diante de eventual ofensa ao trabalhador.

Portanto, comprovado que o empregador não adotou medidas preventivas ou saneadoras para evitar a intolerância ou discriminação religiosa no ambiente de trabalho, ele poderá ser responsabilizado por isso.

Indenização

Quanto a fixação do valor da indenização, existem cinco parâmetros norteadores, a saber:

1) caráter pedagógico e punitivo: a indenização não pode ser ínfima a ponto de fazer com que o agressor torne a praticar os mesmos atos, simplesmente porque não acarreta significativo desfalque em seu patrimônio;

2) proporcionalidade: a indenização não pode ser tamanha que permita ao ofendido enriquecer-se sem causa, uma vez que também não se estaria fazendo justiça em seu sentido mais amplo;

3) gravidade da ofensa: deve-se observar a espécie da ofensa e o efetivo dano sofrido pela vítima, com a hipotética repercussão em sua vida particular e profissional (art. 944 e § único do art. 953, ambos do CC);

4) nível econômico do ofendido: deve-se observar a condição financeira do ofendido para saber a real repercussão da reparação;

5) porte econômico do ofensor: saber a real capacidade de pagamento do ofensor contribui para uma justa indenização.

Chuta que é macumba

Como dito mais acima, já há jurisprudência trabalhista formada no sentido de reconhecer a intolerância religiosa no ambiente de trabalho, e puni-la.

Exemplo famoso é o de uma funcionária que passava por discriminação no trabalho por seguir uma religião de matriz africana.

Ela era obrigada a ouvir piadas como:

"Você está parecendo uma pomba-gira."

"Com este batom vermelho, está parecendo uma entidade."

"Chuta que é macumba."

"Pomba-gira é coisa do demônio."

Ao final, a empresa acabou sendo condenada por intolerância religiosa a indenizar a funcionária em R$10.000,00.

Atuação do STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem atuado de forma contundente na garantia da liberdade religiosa. Vejamos um apouco dessa atuação1.

- Testemunhas de Jeová: em 2024, o STF decidiu que Testemunhas de Jeová maiores de idade e capazes têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue. Também decidiu que o Estado deve oferecer procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde. A posição da Corte foi de que o direito à liberdade religiosa exige que o Estado garanta as condições adequadas para que as pessoas vivam de acordo com ritos, cultos e dogmas de sua fé, sem coerção ou discriminação. A opção pelo tratamento alternativo deve ser tomada de forma livre, consciente e informada sobre as consequências e abrange apenas o paciente. O entendimento foi firmado no julgamento dos Recursos Extraordinários 979742 e 1212272, com repercussão geral.
- Adventistas do Sétimo Dia: em 2020, a Suprema Corte reconheceu a possibilidade de realização de etapas de concurso público em datas e locais diferentes dos previstos em edital por motivos de crença religiosa do candidato, desde que garantida a igualdade entre todos os participantes. O caso concreto (RE 611874) envolveu um membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia que teria de fazer uma prova física num sábado, dia reservado por sua crença para descanso, adoração e ministério. O entendimento foi o de que constranger a pessoa de modo a levá-la a renunciar à sua fé representa desrespeito à diversidade de ideias e à própria diversidade espiritual. Na mesma ocasião, o colegiado considerou possível que a administração pública estabeleça critérios alternativos para o cumprimento dos deveres funcionais, inclusive durante o estágio probatório, por servidores que apontem impedimento por motivos de crença religiosa. O processo (ARE 1099099) envolveu uma professora adventista reprovada no estágio probatório por não trabalhar entre o pôr do sol de sexta-feira e o de sábado. Os dois casos têm repercussão geral.
- Roupas e acessórios em documentos: em 2024, o STF também permitiu o uso de roupas e acessórios relacionados à crença ou à religião em fotos de documentos oficiais, como carteiras de identidade, habilitação e trabalho, desde que o rosto esteja visível e não atrapalhe a identificação da pessoa. A decisão foi tomada no julgamento do RE 859376 (Tema 953 da repercussão geral), na análise da situação de uma freira impedida de utilizar o hábito religioso na foto para renovar sua carteira nacional de habilitação. Para a Corte, a liberdade religiosa engloba o direito de viver em conformidade com a sua crença e assegura a manifestação pública da fé, inclusive por meio de roupas e acessórios condizentes com ela.
- Símbolos religiosos: em novembro de 2024, o STF decidiu que o uso de símbolos religiosos em prédios públicos está relacionado ao aspecto histórico-cultural do país. Ao julgar o ARE 1249095 (Tema 1.086 da repercussão geral), o Tribunal entendeu que a presença desses símbolos não fere a laicidade do Estado e a impessoalidade da administração pública, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira.
- Rituais com animais: o STF validou lei do Rio Grande do Sul que não enquadra como maus tratos o sacrifício de animais em rituais de religiões de matriz africana. A decisão se deu no julgamento do RE 494601, com repercussão geral. Para o Plenário, a proteção específica desses cultos é compatível com o princípio da igualdade, uma vez que sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural, requer especial atenção do Estado.
- Ensino religioso: a discussão sobre o ensino religioso nas escolas públicas chegou ao STF por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439 e foi tema de audiência pública com especialistas, em junho de 2015. Dois anos depois, a Corte validou a oferta de ensino religioso confessional como disciplina facultativa nas escolas públicas de ensino fundamental. A decisão levou em consideração a expressa previsão constitucional de que a matrícula nesse caso é voluntária, mas proíbe o favorecimento de uma religião em detrimento das outras.
- Bíblia nas escolas: ao julgar as ADIs 5256 e 5258, o STF declarou inconstitucionais leis de Mato Grosso do Sul e do Amazonas que obrigavam a manutenção de exemplares da Bíblia nas unidades escolares da rede estadual de ensino e nas bibliotecas públicas. Para o Supremo, a medida viola os princípios da isonomia, da liberdade religiosa e da laicidade estatal.
- Discriminação religiosa e liberdade de expressão: em 2018, a Segunda Turma do STF negou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 146303, em que um pastor da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo buscava trancar ação penal em que foi condenado por praticar e incitar discriminação religiosa na internet contra autoridades públicas e seguidores de diversas crenças religiosas – católica, judaica, islâmica, espírita, wicca, umbandista e outras. Para o colegiado, a incitação ao ódio público não está protegida nem amparada pela cláusula constitucional que assegura liberdade de expressão. Assim, a conduta do pastor não consistiu apenas na defesa da própria religião, mas em um ataque ao culto alheio, “que põe em risco a liberdade religiosa daqueles que professam fé diferente”.

O tema é extremamente relevante e costuma ser cobrado em provas de direito constitucional, direito civil e direito do trabalho. Portanto, muita atenção!


  1. ROMEO, Adriana. Decisões do STF reforçam combate à intolerância religiosa. STF. Disponível em: <https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/decisoes-do-stf-reforcam-combate-a-intolerancia-religiosa/>. ↩︎

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