Análise Jurídica: Informativo 814 STJ. Ainda que a vítima seja heterossexual, pode haver injúria com dizeres homofóbicos

Análise Jurídica: Informativo 814 STJ. Ainda que a vítima seja heterossexual, pode haver injúria com dizeres homofóbicos

O grande questionamento de fundo que chegou no STJ foi: é possível caracterizar o delito de injúria racial equiparada mesmo que a vítima seja heterossexual?

Esse é o tema de fundo que a 5ª Turma do STJ decidiu, no AgRg no HC 844.274-DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 13/5/2024 (Info 814).

Injúria

Antes, vamos contextualizar o caso para que você possa entender.

Contextualização

Imagine a seguinte situação que chegou no STJ:

Fernando estava em casa com sua esposa, e o barulho resultante de sua intimidade, incluindo gemidos altos, foi ouvido por seu vizinho Carlos.

Carlos, incomodado e irritado, começou a gritar ofensas pela janela, chamando Fernando de “giletão, “viadão” e dizendo para ele “sair do armário”. Fernando, que é heterossexual, se sentiu muito ofendido e decidiu gravar as ofensas com seu celular. Há crime?

Após registrar um boletim de ocorrência na polícia, o Ministério Público denunciou Carlos pela prática do crime de injúria qualificada, conforme disposto no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal (antes da Lei nº 14.532/2023).

Código Penal

Art. 140 (...)

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena - reclusão de um a três anos e multa.

(Redação anterior à Lei nº 14.532/2023)

Este dispositivo legal prevê uma pena de reclusão de um a três anos e multa para injúrias que consistam na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

A acusação do Ministério Público baseou-se no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que ofensas homofóbicas são tão graves quanto ofensas racistas.

Interpretação do STF sobre homofobia

Para abordar a criminalização de condutas homofóbicas e transfóbicas, o STF julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26. A questão central era a falta de legislação específica que punisse tais condutas, apesar da Constituição Federal estabelecer mandados de criminalização contra discriminação:

1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);
2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;
3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

STF. Plenário ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em em 13/6/2019 (Info 944).

Equivalência da Homofobia ao Racismo

O STF decidiu que, até que o Congresso Nacional edite uma lei específica, devem-se punir as condutas homofóbicas e transfóbicas como racismo.

Isso se baseia na interpretação de que a homofobia e a transfobia são formas de racismo, considerando a dimensão social do termo. O racismo, neste contexto, não se limita apenas a aspectos biológicos ou fenotípicos, mas inclui discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero.

Conceito Amplo de Racismo

Entende-se o racismo de forma ampla, abrangendo não só aspectos biológicos, mas também históricos e culturais que justificam a desigualdade e a subjugação de grupos vulneráveis.

A homofobia e a transfobia são vistas como expressões de racismo social, que marginalizam e desumanizam indivíduos com base em sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Assim, as práticas homofóbicas e transfóbicas tiveram enquadramento nos crimes de racismo definidos na Lei nº 7.716/89. Isso inclui a discriminação e o preconceito contra pessoas por sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Voltando ao caso concreto: sentença e argumentos de defesa

Carlos recebeu condenação com base na injúria qualificada pelo preconceito.

Inconformado com a sentença, Carlos impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça, alegando que a gravação feita por Fernando sem autorização judicial era ilícita e que aplicar o artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal para ofensas homofóbicas seria uma analogia in malam partem (uma analogia prejudicial ao réu).

Além disso, a defesa argumentou que as ofensas não atingiram a honra subjetiva de Fernando, já que ele era heterossexual e não poderia ser vítima de homofobia.

Decisão do STJ no AgRg no HC 844274

O STJ rejeitou os argumentos da defesa e manteve a condenação, considerando que…

A gravação foi considerada lícita

O STJ decidiu que a gravação feita por Fernando dentro de sua própria casa era válida, pois não se equipara à interceptação telefônica.

A jurisprudência considera que a gravação feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro é uma prova válida, pois os interlocutores podem revelar o teor dos diálogos em depoimento pessoal ou testemunho.

Homofobia pode atingir qualquer pessoa

O STJ também destacou que qualquer pessoa pode ser alvo da homofobia, independentemente da sua orientação sexual real.

O que importa é a intenção de ofender usando termos homofóbicos.

Assim, mesmo que Fernando seja heterossexual, as palavras de Carlos eram ofensivas e preconceituosas, configurando o crime de injúria qualificada.

Como o tema já caiu em provas

FCC - 2022 - DPE-PB - Defensor Público

O Supremo Tribunal Federal, ao decidir pela criminalização da homofobia e da transfobia, considerou que

Alternativas

A) a tipificação dos delitos contra a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero prescinde de nova lei, diante da aplicabilidade da Lei nº 7.716/1989 (Lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) aos casos análogos.

B) o texto constitucional carece de mandado de criminalização contra a discriminação homofóbica e transfóbica, razão pela qual se deu uma interpretação extensiva à Lei nº 7.716/1989 (Lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) para abarcar os crimes resultantes de homofobia e da transfobia.

C) a extensão da tipificação da Lei nº 7.716/1989 (Lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) aplica-se com efeitos retroativos à discriminação homofóbica e transfóbica até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito.

D) se dessume da leitura do texto constitucional um mandado constitucional de criminalização relativo à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, à luz dos tratados internacionais de que o Estado brasileiro é parte.

E) o dever de legislar sobre o tema decorre de compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro no combate à discriminação homofóbica e transfóbica, apesar da ausência de mora inconstitucional do Congresso Nacional.

Gabarito: D

Imagine que isso possa cair assim numa questão de concurso:

É possível caracterizar o delito de injúria racial equiparada mesmo que a vítima seja heterossexual? Justifique sua resposta com base no trecho fornecido.

a) Não, porque a injúria racial equiparada só se aplica a vítimas que realmente pertençam ao grupo minoritário ofendido.

b) Sim, porque a injúria racial equiparada pode ocorrer independentemente da real orientação sexual da vítima, desde que o agressor acredite que a vítima pertença ao grupo minoritário e profira ofensas homofóbicas.

c) Não, porque para caracterizar injúria racial equiparada é necessário que a vítima se identifique como pertencente ao grupo minoritário.

d) Sim, porque o que importa é a intenção do agressor em ofender a vítima com base em preconceitos e estigmas associados ao grupo minoritário, não a real orientação sexual da vítima.

Gabarito: B

Conclusão

Eis, por fim, o entendimento do STJ:

Independentemente da real orientação sexual da vítima, o delito de injúria restou caracterizado quando o acusado, valendo-se de insultos indiscutivelmente preconceituosos e homofóbicos, ofendeu a honra subjetiva do ofendido, seu vizinho. Isto é, não é porque a vítima é heterossexual que não pode sofrer homofobia (injúria racial equiparada) quando seu agressor, acreditando que a vítima seja homossexual, profere ofensas valendo-se de termos pejorativos atrelados de forma criminosa a esse grupo minoritário e estigmatizado.

STJ. 5ª Turma.AgRg no HC 844.274-DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 13/5/2024(Info 814).

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