Introdução
No âmbito do processo penal brasileiro, um dos temas que gera maior debate é a admissibilidade das provas obtidas mediante violação de domicílio.
O princípio da inviolabilidade do domicílio está consagrado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XI, que estabelece que
"a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".
Neste contexto, o presente texto analisa um caso específico julgado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em que a defesa questionou a validade das provas obtidas durante a prisão do acusado Anderson Felipe Nascimento da Silva. A alegação foi a violação do domicílio sem autorização judicial e a quebra da cadeia de custódia das provas.
A decisão abordada oferece importantes insights sobre a aplicação desses princípios e a interpretação deles pelo Poder Judiciário.
Contextualização do caso – HABEAS CORPUS Nº 752670 – RJ (2022/0198952-8)
O caso em análise trata de um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em favor do paciente Anderson Felipe Nascimento da Silva. Ele havia sido condenado pelo crime de roubo majorado.
A defesa alegou que a condenação baseou-se em provas ilícitas, obtidas por meio de invasão de domicílio sem o devido mandado judicial. Houve questionamentos também sobre a cadeia de custódia das provas.
De acordo com os autos, policiais militares abordaram o acusado em sua residência após a vítima ter rastreado o celular roubado até o local. A vítima, um motorista de aplicativo, havia sido assaltada por um indivíduo que utilizou um simulacro de arma de fogo para subtrair dois aparelhos celulares.
Após o crime, a vítima conseguiu rastrear os dispositivos e identificou o acusado nas proximidades de sua residência. Com a chegada da polícia, Anderson Felipe permitiu a entrada dos policiais em sua casa. Lá encontraram o simulacro de arma e uma capa de celular pertencente à vítima.
Análise da Violação Domiciliar e da Cadeia de Custódia
O ponto central da argumentação defensiva foi a alegada invasão de domicílio sem mandado judicial. Isso, segundo a defesa, invalidaria as provas obtidas durante a operação policial.
No entanto, a 5ª Turma do STJ, ao analisar o caso, entendeu que a entrada dos policiais na residência foi legal, uma vez que ocorreu com o consentimento do acusado e em situação de flagrante delito, configurando assim o chamado “flagrante presumido“, conforme previsto no artigo 302, inciso IV, do Código de Processo Penal.
Em relação à cadeia de custódia, a defesa argumentou que houve uma quebra, pois não houve apresentação de uma prova clara de como a vítima realizou o rastreamento do celular.
Todavia, a 5ª Turma do STJ entendeu que a ausência de detalhes sobre o rastreamento não implica, por si só, na quebra da cadeia de custódia ou na invalidade das provas, especialmente considerando que o reconhecimento do acusado foi feito de forma inequívoca pela vítima, tanto no local do crime quanto posteriormente em juízo.
O Princípio da Razoabilidade e a Custódia Cautelar
Outro aspecto relevante abordado na decisão foi a questão da manutenção da prisão preventiva após a condenação em regime inicial aberto.
A 5ª Turma do STJ destacou que a manutenção da prisão cautelar em regime mais gravoso do que o fixado na sentença condenatória constitui um constrangimento ilegal, em violação ao princípio da razoabilidade.
Assim, o Tribunal concedeu parcialmente o Habeas Corpus, determinando que o paciente aguardasse o trânsito em julgado da condenação em regime aberto.
Jurisprudência e Doutrina Aplicada – Cadeia de Custódia
O julgado em questão reforça a jurisprudência consolidada sobre a admissibilidade de provas obtidas em situações de flagrante delito, mesmo em casos que envolvam a entrada em domicílio sem mandado judicial.
A decisão também enfatiza a necessidade de compatibilizar a prisão cautelar com o regime de cumprimento da pena fixado na sentença, de forma a evitar constrangimentos ilegais.
Conforme destacado pela 5ª Turma do STJ, a inviolabilidade domiciliar pode ser excepcionada em casos de flagrante delito. Ademais, não se verifica a quebra da cadeia de custódia quando não há elementos que comprovem adulteração da prova.
Esse entendimento alinha-se à doutrina. Ela sustenta que se deve avaliar a legalidade das provas considerando as circunstâncias concretas de cada caso, sempre respeitando os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Deve-se fazer a análise da legalidade das provas no processo penal considerando as circunstâncias concretas de cada caso, em conformidade com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Segundo Renato Brasileiro de Lima (2023), a cadeia de custódia, introduzida pela Lei 13.964/2019, é essencial para assegurar a integridade da prova e sua validade no processo.
Aury Lopes Jr. (2022) reforça que a quebra da cadeia de custódia pode comprometer a confiabilidade da prova, mas a avaliação deve ser sempre contextual.
Para Julio Fabbrini Mirabete (2022), a correta aplicação da cadeia de custódia é vital para garantir a imparcialidade do processo. Assim, é imprescindível que o juiz verifique a regularidade da prova, respeitando os direitos do acusado.
Divergência Doutrinária – a incursão em domicílio apenas em caso de flagrante próprio
A doutrina de Direito Processual Penal que sustenta a possibilidade de incursão em domicílio apenas no caso de flagrante próprio, excluindo as hipóteses de flagrante impróprio e flagrante presumido, é uma questão que divide opiniões entre os juristas.
Esta corrente doutrinária argumenta que a proteção constitucional à inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI, da Constituição Federal) deve ser interpretada de forma restritiva. Ou seja, deve-se garantir que o ingresso no domicílio sem o consentimento do morador ou sem mandado judicial só possa ocorrer em situações em que o crime esteja sendo cometido, ou seja, no exato momento de sua prática (flagrante próprio).
Defende-se esse entendimento com base na necessidade de preservação máxima da esfera de privacidade dos indivíduos, conforme preconizado pela Constituição.
Assim, a doutrina alega que permitir a entrada no domicílio nas situações de flagrante impróprio (quando o agente é perseguido logo após a prática do crime) ou de flagrante presumido (quando o agente é encontrado, logo após o fato, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração) seria uma interpretação extensiva que poderia violar direitos fundamentais.
Atuação policial
Em sua obra, Renato Brasileiro de Lima discute essa questão ao analisar os limites da atuação policial frente à inviolabilidade domiciliar.
Ele sustenta que, embora a jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal permita a entrada em domicílio em casos de flagrante impróprio e presumido, o questionamento de tal prática deveria ser sob a ótica de uma interpretação estrita do texto constitucional, privilegiando o flagrante próprio como a única hipótese autorizadora do ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial.
A defesa dessa posição se baseia em princípios como o da proporcionalidade e o da razoabilidade, que exigem uma ponderação rigorosa entre o direito à segurança pública e o direito à privacidade.
De acordo com essa corrente, estender a possibilidade de ingresso em domicílio às hipóteses de flagrante impróprio e presumido implicaria uma flexibilização indevida de garantias fundamentais. Não se pode admitir isso em um Estado Democrático de Direito.
Conforme ensina Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 345),
“a incursão em domicílio somente seria possível em caso de flagrante próprio, não se admitindo o ingresso forçado nas hipóteses de flagrante impróprio ou presumido, em respeito à inviolabilidade domiciliar garantida pela Constituição Federal”.
Esse posicionamento reflete uma interpretação restritiva da norma constitucional, com o intuito de preservar a privacidade dos indivíduos contra intervenções estatais que não estejam plenamente justificadas.
Conclusão
O presente caso julgado pela 5ª Turma do STJ oferece um exemplo prático e didático de aplicação dos princípios constitucionais da inviolabilidade domiciliar e da cadeia de custódia no processo penal brasileiro.
A decisão destaca a importância de assegurar que a atuação estatal, mesmo em situações de flagrante delito, respeite os direitos fundamentais do indivíduo, sem, contudo, inviabilizar a obtenção de provas necessárias para a aplicação da justiça.
Para candidatos que se preparam para concursos públicos, a compreensão desses princípios é essencial. Isso porque eles permeiam diversas questões práticas e teóricas cobradas em provas, além de serem fundamentais para o exercício da advocacia e outras carreiras jurídicas.
Referências
- LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2023.
- LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Direito Processual Penal. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
- LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
- MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
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