Olá, pessoal! Aqui é o professor Allan Joos e hoje faremos a análise jurídica de um caso trágico ocorrido no Distrito Federal, envolvendo o homicídio qualificado.
Entenda o caso
Maria dos Reis Araújo Ferreira foi denunciada por homicídio qualificado após a morte de sua filha, de apenas 14 anos, após deixar de procurar atendimento médico à adolescente e se firmar apenas em sua “fé religiosa”, mesmo ciente dos riscos à vida da menina.
O caso é emblemático porque envolve, de um lado, a responsabilidade penal da genitora e, de outro, os limites do direito à liberdade de crença.
O Direito à Vida e a Responsabilidade Penal por Omissão
O direito à vida, garantido pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, é um dos principais pilares dos direitos fundamentais previstos na Carta Constitucional. Ele estabelece a base para outros direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a proteção à saúde.
No caso de Maria dos Reis Araújo Ferreira, a denúncia de homicídio qualificado decorre do fato de que, ao recusar tratamento médico adequado para sua filha, baseada em sua fé religiosa, a mãe violou, de forma consciente e voluntária, diretamente esse direito fundamental e assumiu o risco de causar a morte da adolescente.
Do ponto de vista do Código Penal, o crime cometido por Maria pode ser tipificado como homicídio por omissão.
O artigo 13, §2º, do Código Penal Brasileiro dispõe que:
a omissão será penalmente relevante quando o omitente tiver a obrigação de agir para evitar o resultado, como no caso dos pais, que têm o dever legal de cuidar dos filhos.
Ao se omitir, Maria dos Reis deixou de buscar assistência médica para a filha, que apresentava sintomas graves de uma condição crônica – diabetes – e estava claramente debilitada. A omissão, nesse caso, contribuiu diretamente para o agravamento do quadro de saúde de Janaína, resultando em sua morte por sepse, pneumonia necrotizante e pielonefrite.
Sobre o dolo da conduta, o Ministério Público do Distrito Federal entendeu que a mãe deve responder por homicídio doloso, na modalidade qualificada, por, ao menos, no nosso ponto de vista, ter assumido o risco de produzir o resultado (dolo eventual).
Assim, de acordo com o entendimento do Ministério Público, aliada à omissão as demais circunstâncias que levaram à morte da adolescente, a conduta se amolda no artigo 121, §2º, inciso III, que trata do emprego de meio cruel.
O sofrimento intenso da adolescente, que apresentava queimaduras, equimoses e subnutrição, reforça a imputação de homicídio qualificado por meio cruel. Essa qualificadora é relevante, pois agrava a pena em relação ao homicídio simples, devido ao sofrimento que a vítima experimentou antes de sua morte.
A Liberdade Religiosa e Suas Limitações no Direito Brasileiro
A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 5º, inciso VI, a liberdade de crença e a proteção aos locais de culto e suas liturgias.
No entanto, apesar de ser um direito fundamental, a liberdade religiosa não pode ser considerada um direito absoluto. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) tem reafirmado, em diversos julgados, que nenhum direito é ilimitado, especialmente quando colide com outros direitos de igual ou maior importância, como o direito à vida e à saúde.
Em situações como a de Maria dos Reis Araújo Ferreira, onde a liberdade religiosa é invocada para justificar a recusa de tratamento médico para terceiros, especialmente menores de idade, o Estado tem o dever de intervir. O princípio da proteção integral da criança, previsto no artigo 227 da Constituição, estabelece que é responsabilidade da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde e à dignidade, com absoluta prioridade. Assim, a autonomia dos pais sobre decisões que afetam a saúde dos filhos não é irrestrita, especialmente quando a vida da criança está em risco.
Nos casos em que há um conflito entre a liberdade religiosa e o direito à vida, o princípio da proporcionalidade é utilizado para resolver o impasse. Este princípio exige uma análise cuidadosa dos direitos em jogo e busca alcançar um equilíbrio justo entre eles. No caso de Maria dos Reis, a omissão em fornecer cuidados médicos básicos a sua filha, que culminou em sua morte, não pode ser justificada pela fé religiosa, uma vez que o direito à vida, especialmente de uma menor em situação de vulnerabilidade, prevalece sobre o direito à liberdade de crença.
Jurisprudência e Precedentes Relevantes sobre os Limites da Liberdade Religiosa e o Direito à Vida
Casos semelhantes já foram analisados pelo Poder Judiciário brasileiro, e a jurisprudência segue uma linha consistente de responsabilizar os pais que, por motivos religiosos, negam assistência médica a seus filhos.
Um exemplo notável é o julgamento do Habeas Corpus 268.459/SP pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que os pais de uma criança foram acusados de homicídio culposo após recusarem tratamento médico em razão de suas crenças religiosas. Nesse caso, o STJ entendeu que, ao não buscarem tratamento, os pais negligenciaram o dever de cuidado e contribuíram para a morte da criança, configurando assim o crime de homicídio.
Além disso, a jurisprudência também ressalta que o direito à vida é um bem jurídico de valor supremo, especialmente quando se trata de proteger pessoas vulneráveis, como crianças. A responsabilidade dos pais é ainda maior quando se trata de garantir os cuidados necessários à saúde e à sobrevivência de seus filhos. A doutrina e a jurisprudência enfatizam que o direito à liberdade religiosa, embora fundamental, deve ser exercido dentro dos limites impostos pelo respeito à vida e à dignidade humana.
A Posição do Ministério Público e a Defesa do Melhor Interesse da Criança
No caso de Maria dos Reis, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) foi enfático ao afirmar que a recusa em buscar tratamento médico para Janaína foi uma decisão consciente e voluntária da mãe, baseada exclusivamente em suas crenças religiosas. Para o MPDFT, a conduta da mãe extrapola o direito à liberdade religiosa, uma vez que ela tinha plena consciência da gravidade da condição de saúde da filha, mas ainda assim optou por não buscar assistência médica.
A responsabilidade estatal de garantir o melhor interesse da criança é um princípio consolidado na jurisprudência internacional e nacional. Em casos em que os pais se omitem ou agem de forma contrária ao interesse dos filhos, o Estado tem o dever de intervir para garantir que os direitos fundamentais da criança sejam respeitados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 4º, estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida e à saúde de crianças e adolescentes.
Conclusão
O caso de Maria dos Reis Araújo Ferreira demonstra claramente os limites da liberdade religiosa no Brasil, especialmente quando há risco para a vida e a saúde de menores de idade.
O direito à vida, consagrado na Constituição Federal, prevalece sobre o direito à liberdade de crença, quando o exercício deste coloca em risco a integridade física ou psíquica de terceiros.
Além disso, os pais têm um dever legal de cuidado com seus filhos, e a omissão desse dever, especialmente em situações de grave risco à saúde, pode configurar crime, como demonstrado no caso em análise.
Portanto, a recusa de tratamento médico com base em crenças religiosas não exime os pais de suas responsabilidades legais e pode resultar em consequências penais graves, como a imputação de homicídio qualificado.
O direito à vida é absoluto e deve ser garantido, mesmo em face de outras garantias constitucionais, como a liberdade religiosa, que deve ser exercida com responsabilidade e dentro dos limites estabelecidos pela lei.
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