* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
A TV Globo acabou sendo condenada a pagar uma indenização de dez mil reais a Suzane von Richthofen, condenada pelo assassinato dos pais em 2002, por exibir um laudo psicológico sigiloso, em reportagem de 2018.
O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que os direitos individuais de Suzane foram violados em decorrência da divulgação, sem consentimento, do documento que avaliava se a condenada poderia cumprir parte da pena em regime semiaberto. O pagamento do valor ocorreu no final de 2024.
Richthofen acionou a emissora judicialmente após a exibição do documento, que analisava sua aptidão para a progressão ao regime semiaberto. O laudo indicava que não havia indícios de que Suzane representasse risco à sociedade, favorecendo sua reintegração. No entanto, também apontava traços de personalidade manipuladora e agressividade dissimulada.
O relator do recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Rui Cascaldi, destacou que, apesar da notoriedade do crime, a condenada não perdeu seus direitos individuais fundamentais.
Pontuou o magistrado:
“Essa espécie de divulgação, resguardada a liberdade que a imprensa deve ter em um país democrático como o Brasil, transborda a mera informação”.
Atualmente, Suzane cumpre pena em regime aberto.
Relembre o caso
Suzane foi condenada pelo assassinato dos pais, Marísia e Manfred Von Richthofen. Consideraram-na mentora de um dos crimes mais bárbaros que já assombrou o país. A execução do crime ficou a cargo dos irmãos Cravinhos (Daniel, seu namorado à época, e Cristian).
O crime aconteceu na noite de 31 de outubro de 2002, no quarto em que o casal dormia na casa da família, uma mansão no bairro Campo Belo, em São Paulo.
Suzane levou os irmãos Cravinho em seu carro e abriu a porta da residência para que eles matassem Manfred e Marísia com golpes de porrete na cabeça. Antes, Suzane subiu ao quarto e se certificou de que os pais dormiam. Em seguida, os três simularam um cenário de roubo.
A motivação do crime também era clara: o relacionamento de Suzane com Daniel não era bem-visto pelos pais dela, especialmente Manfred. Ele teria usado de força física contra a filha e prometido deserdá-la, caso não desse fim ao namoro.
Suzane foi condenada a 39 anos e seis meses de prisão em regime fechado, mesma pena aplicada a Daniel Cravinho. Cristian Cravinho pegou 38 anos e seis meses de reclusão.
Vida de Suzane von Richthofen hoje
Depois que saiu da prisão para cumprir o restante da pena em liberdade, a vida de Richthofen sofreu algumas reviravoltas. Ela começou abrindo uma pequena empresa de acessórios femininos feitos à mão em Angatuba.
Depois, com autorização judicial, começou a cursar biomedicina no Centro Universitário Sudoeste Paulista, em Itapetininga.
Posteriormente ela se inscreveu para um cargo público de telefonista na Câmara Municipal de Avaré. Conforme a assessoria da Câmara, o concurso aconteceu, mas Suzane não compareceu para fazer a prova.
Iniciou um relacionamento com o médico Felipe Zecchini Muniz, com quem teve o seu primeiro filho, e hoje vive em Bragança Paulista. Com sua nota do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), retomou os estudos em Direito na Universidade São Francisco.
Tentou ingressar no Tribunal de Justiça de São Paulo, no cargo de escrevente, mas acabou não avançando para a segunda fase do concurso (não atingiu a pontuação mínima de 73 pontos, de um total de 100).
Análise jurídica
O caso envolve uma complexa discussão acerca de dois princípios fundamentais: liberdade de expressão x proteção dos direitos individuais fundamentais (honra, privacidade e imagem).
A Constituição Federal protege tanto o direito à liberdade de expressão quanto o direito à privacidade e à imagem.
CF/88
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
...
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
...
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
...
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Mas não existem direitos absolutos. Todos os direitos devem observar certas balizas instituídas pelo próprio ordenamento jurídico. A liberdade de expressão, integrante das liberdades públicas, é cláusula pétrea, mas não pode ser exercida de maneira a ofender a dignidade humana de outrem ou de grupos minoritários.
Dino ressaltou, no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.513.428, que o Supremo tem entendimento consolidado de que o direito à liberdade de expressão e de livre manifestação do pensamento não são absolutos, cabendo intervenção da Justiça em situações de evidente abuso:
“Entendo que as obras jurídicas adversadas não estão albergadas pelo manto da liberdade de expressão, pois, ao atribuírem às mulheres e à comunidade LGBTQIAPN+ características depreciativas, fazendo um juízo de valor negativo e utilizando-se de expressões misóginas e homotransfóbicas, afrontam o direito à igualdade e violam o postulado da dignidade da pessoa humana, endossando o cenário de violência, ódio e preconceito contra esses grupos vulneráveis".
Portanto, o Tribunal reconheceu que o laudo era sigiloso, e, não havendo autorização da apenada, sua divulgação, em rede nacional, acabou por ferir os direitos fundamentais à privacidade.
Nesse contexto, podemos discutir, também, o direito ao esquecimento. Mas o que vem a ser esse direito ao esquecimento? Vejamos.
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O direito ao esquecimento também é conhecido como “direito de ser deixado em paz” ou o “direito de estar só”.
Fundamentos do direito ao esquecimento
- Direito à privacidade;
- Direito à intimidade;
- Direito à honra; e
- Dignidade da pessoa humana.
Críticas ao direito ao esquecimento
O Ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 1.335.153-RJ, destacou os seguintes pontos contrários ao direito ao esquecimento:
a) O acolhimento do chamado direito ao esquecimento constituiria um atentado à liberdade de expressão e de imprensa;
b) O direito de fazer desaparecer as informações que retratam uma pessoa significa perda da própria história, o que vale dizer que o direito ao esquecimento afronta o direito à memória de toda a sociedade;
c) O direito ao esquecimento teria o condão de fazer desaparecer registros sobre crimes e criminosos perversos, que entraram para a história social, policial e judiciária, informações de inegável interesse público;
d) É absurdo imaginar que uma informação que é lícita se torne ilícita pelo simples fato de que já passou muito tempo desde a sua ocorrência;
e) Quando alguém se insere em um fato de interesse coletivo, mitiga-se a proteção à intimidade e privacidade em benefício do interesse público.
Importante destacar que em 2013, na VI Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, foi aprovado um enunciado defendendo a existência do direito ao esquecimento como uma expressão da dignidade da pessoa humana.
Enunciado 531: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.
O Superior Tribunal de Justiça já admitiu a tutela do direito ao esquecimento, conforme REsp 1.335.153-RJ e REsp 1.334.097-RJ.
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, julgando o TEMA 786, decidiu que:
“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
No julgamento do referido tema, a ministra Cármen Lúcia afirmou que não há como extrair do sistema jurídico brasileiro, de forma genérica e plena, o esquecimento como direito fundamental limitador da liberdade de expressão.
Segundo a ótica do direito à verdade histórica, no âmbito do princípio da solidariedade entre gerações, considerou que não é possível, do ponto de vista jurídico, que uma geração negue à próxima o direito de saber a sua história: “Quem vai saber da escravidão, da violência contra mulher, contra índios, contra gays, senão pelo relato e pela exibição de exemplos específicos para comprovar a existência da agressão, da tortura e do feminicídio?”.
Lembrando que, no caso da Suzane, o TV Globo acabou divulgando um laudo psicológico sigiloso, atraindo a responsabilização civil pelos danos causados à privacidade da apenada.
Ótimo tema para provas de direito constitucional e direito civil.
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