HC 876.612 e a fundamentação per relationem no Processo Penal

HC 876.612 e a fundamentação per relationem no Processo Penal

HC 876.612 e a fundamentação per relationem no Processo Penal: análise da validade jurídica, requisitos constitucionais e impacto no contraditório e ampla defesa em decisões judiciais.

per relationem

Imagine uma situação hipotética em que um juiz que recebe uma robusta representação policial requerendo a expedição de mandado de busca e apreensão. 

Para você ter ideia, imagine um documento, minuciosamente elaborado pela Polícia, que descreve uma investigação que demorou mais de anos sobre uma possível organização criminosa.

O fato é que a representação contém 120 páginas de relatório investigativo, incluindo transcrições de conversas interceptadas e vários documentos que confirmam a existência de um verdadeiro flagrante grave que está sendo cometido.

Logo, o magistrado, diante da urgência da situação e da extensa fundamentação já apresentada pela autoridade policial, profere uma decisão concisa fazendo remissão ao relatório policial: 

Assim, a operação foi realizada com êxito. 

No entanto, o problema é que após o oferecimento da denúncia, a defesa dos acusados impetra habeas corpus alegando nulidade da decisão que determinou a busca e apreensão por ausência de fundamentação adequada, argumentando que o magistrado deveria ter analisado expressamente cada um dos elementos apresentados pela polícia, não podendo se limitar à fundamentação per relationem.

Nessa linha, questiona-se:

  • Seria válida a utilização da fundamentação per relationem pelo magistrado plantonista?
  • Quais critérios devem ser observados para que uma decisão judicial possa se valer legitimamente desta técnica de fundamentação?

O que é fundamentação per relationem?

De início, perceba que se trata de uma forma de motivação por meio da qual se faz remissão ou referência às alegações de uma das partes, a precedente ou a decisão anterior nos autos do mesmo processo. 

Nesse sentido, é chamada pela doutrina e jurisprudência de motivação ou fundamentação per relationem ou aliunde. 

Ademais, também é denominada de motivação referenciada, por referência ou por remissão.

Há previsão da fundamentação per relationem em algum lugar?

Sim, há previsão expressa desta técnica na Lei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. O artigo 50, §1º da referida lei estabelece:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: [...] 

§ 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato."

Perceba que embora este dispositivo se refira especificamente ao processo administrativo federal, sua lógica tem sido aplicada analogicamente ao processo judicial.

Isto porque o dever de fundamentação, seja no âmbito administrativo ou judicial, serve ao mesmo propósito: permitir o controle da decisão pelos interessados e pela sociedade.

E o que tem decidido a 5ª Turma do STJ?

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da 5ª Turma, no julgamento do HC 876.612/SP, estabeleceu limites e requisitos da fundamentação per relationem em decisões judiciais, especificamente no contexto de medidas cautelares no processo penal. 

Isto porque, a principal limitação é que a fundamentação das decisões judiciais representa uma das mais significativas garantias processuais no ordenamento jurídico brasileiro.  Sua previsão constitucional, no art. 93, IX, assegura um instrumento essencial para assegurar o controle da atividade jurisdicional.

No caso específico analisado pelo STJ, a autoridade policial havia realizado investigação que apontava diversos elementos indicativos da prática de tráfico de drogas. 

Desta feita, o relatório policial descrevia minuciosamente as diligências realizadas, incluindo observações de campo que documentavam condutas típicas do comércio de entorpecentes, como entregas rápidas e encontros suspeitos.

Diante disso, a decisão judicial que determinou a busca e apreensão fez expressa referência a este relatório policial, considerando presentes o fumus boni juris e o periculum in mora necessários à medida cautelar. 

No entanto, o detalhe: não acrescentou fundamentação própria além da remissão aos elementos já constantes da representação policial.

Diante deste cenário, instaurou-se significativa divergência na 5ª Turma do STJ. 

VOTO VENCIDO

A Ministra Daniela Teixeira, relatora originária, sustentava que a mera referência à manifestação policial, sem complementação pelo magistrado, violaria o dever constitucional de fundamentação. 

Em sua visão, seria necessário que o juiz apresentasse motivação própria, demonstrando seu raciocínio na análise dos elementos apresentados pela autoridade policial.

VOTO VENCEDOR

Prevaleceu, contudo, o entendimento do Ministro Joel Ilan Paciornik, para quem a fundamentação per relationem é válida desde que atendidos dois requisitos essenciais: 

(i) a manifestação processual referenciada contenha fundamentação suficiente e (ii) seja acessível às partes para viabilizar o contraditório.

O voto vencedor destacou que o magistrado não precisa, necessariamente, reproduzir ou complementar os argumentos já expostos em outra peça processual, desde que a decisão referenciada apresente motivação adequada e esteja disponível para consulta. 

A lógica do Relator parte do princípio de que exigir a repetição de fundamentos já adequadamente expostos nos autos poderia resultar em desnecessária tautologia, sem efetivo ganho para a garantia do devido processo legal.

Divergência com a 6ª Turma do STJ?

De maneira geral, sob pena de nulidade, a utilização da fundamentação per relationem demanda, ainda que concisamente, acréscimos de fundamentação pelo magistrado ou exposição das premissas fáticas que formaram sua convicção, conforme entendimentos da 6ª Turma do STJ.

Veja:

Em decisões que autorizem a interceptação das comunicações telefônicas de investigados, é inválida a utilização da técnica da fundamentação per relationem (por referência) sem tecer nenhuma consideração autônoma, ainda que sucintamente, justificando a indispensabilidade da autorização de inclusão ou de prorrogação de terminais em diligência de interceptação telefônica.
STJ. 6ª Turma. RHC 119342-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/09/2022 (Info 751).

No caso concreto, o Ministério Público solicitou a quebra de sigilo bancário do suspeito. O magistrado deferiu o pedido em decisão manuscrita que dizia apenas o seguinte: “Defiro integralmente os pedidos formulados pelo Ministério Público, às fls. 640/658, nos termos da fundamentação apresentada.”

O STJ considerou que essa decisão foi nula por ausência de fundamentação.

Não havendo nenhum acréscimo de fundamentação ou mesmo exposição das premissas fáticas que motivaram o convencimento do magistrado, deve-se anular a autorização de quebra de sigilo bancário e de todas as provas daí decorrentes, excetuadas as provas independentes e não contaminadas. 
STJ. 6ª Turma. REsp 2.072.790/DF, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 8/8/2023 (Info 785).

Em resumo:

A 6ª Turma do STJ, conforme se extrai dos julgados acima, estabeleceu uma posição mais rigorosa quanto aos requisitos da fundamentação per relationem. 

Nos precedentes analisados, especialmente no HC 214049-SP e no HC 654131-RS, a 6ª Turma enfatizou que não basta a mera referência a outra peça processual – é necessário que o magistrado:

  1. Faça referência concreta às peças que pretende encampar
  2. Transcreva as partes relevantes que embasam seu raciocínio
  3. Demonstre o nexo entre os fundamentos referenciados e sua conclusão
  4. Acrescente, ainda que sucintamente, motivação própria

Já no caso que analisamos da 5ª Turma (HC 876.612/SP), adotou-se posição mais flexível. O voto vencedor do Min. Joel Ilan Paciornik considerou válida a fundamentação per relationem desde que atendidos apenas dois requisitos básicos:

  1. A manifestação processual referenciada contenha fundamentação suficiente
  2. O conteúdo referenciado seja acessível às partes

Esta diferença de entendimento é significativa do ponto de vista prático. 

Por exemplo, no caso concreto do HC 876.612/SP, a decisão que determinou a busca e apreensão limitou-se a fazer referência ao relatório policial, sem transcrever trechos ou acrescentar fundamentação própria. 

Para os parâmetros da 6ª Turma, tal decisão seria provavelmente considerada nula por ausência de fundamentação adequada. 

No entanto, pela visão mais flexível da 5ª Turma, a decisão foi considerada válida porque o relatório policial referenciado continha fundamentação suficiente e estava acessível nos autos.

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

(2023 – CEBRASPE – JUIZ TJDFT)

A jurisprudência veda a chamada fundamentação per relationem, ainda que a decisão faça referência concreta às peças que pretende encampar, transcrevendo as partes delas que julgar interessantes para legitimar o raciocínio lógico que embasa a conclusão a que se quer chegar.

Gabarito: Errado

Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!

0 Shares:
Você pode gostar também