Adoção de indígena: FUNAI e competência da Justiça Federal

Adoção de indígena: FUNAI e competência da Justiça Federal

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Decisão do STJ

O Superior Tribunal de Justiça, através de sua Segunda Seção, decidiu que a intervenção da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI – nas ações de adoção de criança indígena, ainda que obrigatória, não atrai automaticamente a competência da Justiça Federal.

E isso porque a adoção de criança indígena não envolve disputa em torno de direitos indígenas e que o melhor interesse da criança ou do adolescente recomenda a análise do caso pela Justiça estadual, uma vez que as Varas de Infância e Juventude contam com equipe técnica especializada e têm condições de acompanhar o processo de forma mais adequada.

A decisão tomada pelo STJ ocorreu no âmbito de uma ação de adoção movida por um indígena que cuida da criança desde o nascimento, pois convive em união estável com a mãe dela.

Conflito de competência

A Justiça estadual do Pará declinou da competência para a Justiça Federal em razão da intervenção obrigatória da FUNAI.

O juízo federal, contudo, suscitou o conflito no STJ. O juízo entendeu que a intervenção da autarquia não altera a competência e que a manutenção do processo na Justiça estadual atende ao melhor interesse da criança.

Adoção de indígena

O conflito de competência foi relatado pela ministra Nancy Andrighi, que explicou que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu art. 28, parágrafo 6º, inciso III, determina que, na hipótese de procedimento de guarda, tutela ou adoção de criança ou adolescente indígena, é obrigatória a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista perante a equipe multidisciplinar que acompanhará o procedimento.

ECA

Art. 28...

§ 6º Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório:

I - que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal;

II - que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia;

III - a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso.

A presença da FUNAI nesses casos possibilita a melhor verificação das condições e particularidades da família biológica. O objetivo é propiciar o adequado acolhimento do menor na família substituta.

A intervenção obrigatória da FUNAI configura não uma simples formalidade processual, mas um mecanismo que legitima o processo adotivo de criança e adolescente oriundos de família indígena.

A Constituição Federal, em seu art. 109, I e XI, inclui entre as competências da Justiça Federal as demandas nas quais as autarquias federais sejam autoras, rés, assistentes ou oponentes, bem como aquelas que envolvem disputa em torno de direitos indígenas.

CF/88

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

...

XI - a disputa sobre direitos indígenas.

Mas a competência federal se refere aos direitos indígenas elencados no artigo 231 da Constituição. Ou seja, a Justiça Federal só será competente quando o processo versar sobre questões diretamente ligadas à cultura indígena e ao direito sobre suas terras, ou quando envolvidos interesses da União, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Nancy Andrighi ressaltou:

"Na ação de adoção de criança indígena, portanto, a Funai não exerce direito próprio, não figurando como autora, ré, assistente ou oponente. Trata-se, em verdade, de atuação consultiva perante a equipe multidisciplinar que acompanhará a demanda (artigo 28, parágrafo 6º, ECA)".

A ação de adoção não afeta direitos indígenas, mas sim o resguardo da integridade psicofísica da criança ou do adolescente. Esse procedimento diz respeito a direito privado, uma vez que trata de interesse particular do menor de origem indígena.

Destituição de poder familiar

O STJ também possui entendimento consolidado de que, nas ações relacionadas à destituição do poder familiar de crianças ou adolescentes indígenas – ou cujos pais são de origem indígena –, é obrigatória a intervenção da FUNAI, para assegurar que sejam consideradas e respeitadas a identidade social e cultural do povo indígena, os seus costumes e tradições, bem como para que o menor seja colocado, de forma prioritária, no seio de sua comunidade ou junto de membros da mesma etnia.

A orientação foi estabelecida pela Terceira Turma do STJ. Na ocasião, analisou-se uma ação em que uma mulher indígena foi destituída do poder sobre suas duas filhas, após o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul concluir que houve abandono material e psicológico. Segundo o Ministério Público, a mãe era alcoólatra e usuária de drogas, e recusou o apoio da assistência social.

A relatora também foi a ministra Nancy Andrighi, que pontuou, de forma precisa:

"Por se tratar de órgão especializado, é a Funai que reúne as melhores condições de avaliar a situação do menor de origem indígena, não apenas à luz dos padrões de adequação da sociedade em geral, mas, sobretudo, a partir das especificidades de sua própria cultura, o que influencia, inclusive, na escolha de uma família substituta de tribo que possua maiores afinidades com aquela da qual se origina o menor".

Andrighi explicou que sobreveio a Lei 13.509/2017, que revogou o art. 161, parágrafo 2º, do ECA e passou a disciplinar a adoção de indígenas no art. 157, parágrafo 2º.

De acordo com o novo texto, nas hipóteses de suspensão do poder familiar – liminar ou incidentalmente –, é obrigatória a participação de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista.

ECA

Art. 157. Havendo motivo grave, poderá a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, decretar a suspensão do poder familiar, liminar ou incidentalmente, até o julgamento definitivo da causa, ficando a criança ou adolescente confiado a pessoa idônea, mediante termo de responsabilidade.

...

§ 2 o Em sendo os pais oriundos de comunidades indígenas, é ainda obrigatória a intervenção, junto à equipe interprofissional ou multidisciplinar referida no § 1º deste artigo, de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, observado o disposto no § 6 o do art. 28 desta Lei.

Tratamento diferenciado

Embora a redação possa sugerir que a intervenção da FUNAI somente é obrigatória nos casos de suspensão liminar ou incidental do poder familiar, o ponto central é que a alteração normativa esclarece que a realização de estudo social ou perícia por equipe multidisciplinar, bem como a participação da fundação, deverão ocorrer sempre e logo após o recebimento da petição inicial.

A intervenção obrigatória da FUNAI nos litígios que envolvam da destituição de poder familiar em povos indígenas tem caráter de ordem pública, na medida em que resguarda valores e objetivos político-sociais caros à sociedade – e, por isso, possui caráter imperativo e inderrogável.

Podemos concluir, portanto, que as regras expressas no ECA demonstram a preocupação do legislador em conferir às crianças de origem indígena tratamento diferenciado, com base no fato de pertencerem a uma etnia minoritária, historicamente discriminada e marginalizada no Brasil – tratando-se de dispositivos que concretizam os arts. 227 e 231 da Constituição.

Regime jurídico especial

Aplica-se, em relação aos indígenas, um sistema adicional e próprio de proteção legal, haja vista a especial condição dos índios em nosso país (vulnerabilidade, importância cultural etc.).

Citemos algumas implicações decorrentes desse sistema protetivo especial:

As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (artigo 231, §2º da CF)
O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. (artigo 231, §3º, da CF)
As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis. (artigo 231, §4º da CF)
É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. (artigo 231, §5º da CF)
São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. (artigo 231, §6º da CF)
É proibido, nas terras indígenas, o exercício da atividade de garimpo por meio de cooperativas. (artigo 231, §7º da CF)

Ótimo tema para provas de direito constitucional e direito ambiental.


Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!
0 Shares:
Você pode gostar também