* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Todo mundo no Rio
Depois de 13 anos, a cantora pop Lady Gaga retornou ao Rio de Janeiro, para um mega show em Copacabana, que reuniu 2,1 milhões de pessoas, grande parte turistas atraídos pelo espetáculo.
Uma superestrutura foi montada. Um palco gigantesco e 16 telões espalhados pelas areias da praia de Copacabana serviram para embalar os milhões de fãs da cantora.
A vinda de Lady Gaga faz parte de um projeto da Prefeitura do Rio de Janeiro chamado “Todo Mundo no Rio”, e custou R$ 92 milhões. Estima-se que R$ 600 milhões foram injetados na economia da cidade maravilhosa.
O projeto busca viabilizar grandes shows internacionais, gratuitos, na Praia de Copacabana, com o objetivo de fazer toda a economia da cidade girar. É promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro e produzido pela Bonus Track.
O projeto apresenta uma série de megashows gratuitos de música internacional, na areia da Praia de Copacabana, e também busca transformar o primeiro final de semana de maio na data “para todo mundo estar no Rio”.
O primeiro show do projeto foi em 2024, com a cantora Madonna, que reuniu 1,6 milhão de pessoas, e custou R$ 60 milhões. Estima-se que esse show injetou, na economia do Rio, em torno de R$300 milhões.
O prefeito Eduardo Paes já informou o interesse em trazer alguns nomes gigantes, como U2, Adele e Beyoncé.
Análise Jurídica
A grande discussão jurídica é relacionada à constitucionalidade ou não do financiamento público de espetáculos artísticos.
E isso porque parte dos custos desses megashows é bancada com dinheiro público, ou seja, do contribuinte.

Os shows são gratuitos para o público, mas alguém tem que pagar a conta.
No caso do show da Lady Gaga, a Prefeitura do Rio aportou R$ 15 milhões e o Estado do Rio mais R$ 15 milhões.
Para garantir a segurança e saúde do público, a prefeitura disponibilizou mais de 5 mil agentes de policiamento somente para o show. Postos de emergência também estavam a postos e mais de 30 mil litro de água foram fornecidos de graça pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae).
Não é novidade que o Brasil sofre com a falta de recursos para a saúde, educação, segurança, habitação.
Nesse contexto de escassos recursos públicos e serviços deficientes, cabe a pergunta:
Esse dinheiro não seria mais bem investido se, ao invés de financiar shows de bandas famosas, fosse destinado para a melhoria de hospitais, a construção de escolas, a qualificação de praças, museus ou a compra de viaturas e armamento para a polícia?
A resposta não é simples. Temos defensores de ambos os lados.
Defensores do financiamento público de shows
Aqueles que defendem o uso de recursos públicos para financiar artistas, bandas e megashows alegam que o retorno para a cidade compensa, e muito, o investimento feito.
Um grande show, como o da Lady Gaga, injetou R$600 milhões na economia da cidade. Os hoteis tiveram ocupação máxima, os restaurantes lotados, os ambulantes observaram um aumento vertiginoso nas vendas.
A chegada de milhares e milhares de turistas de todo o Brasil e do mundo aquece a economia, gerando renda, emprego e, consequentemente, aumentando a arrecadação tributária.
Isso sem falar na publicidade para a cidade, que é vista e comentada ao redor do mundo, e no fomento à cultura e à arte, já que o Rio de Janeiro se consolida como um polo artístico-cultural na América Latina.
Em resumo, o retorno financeiro, social e cultural com a promoção de megashows é suficiente para justificar e atestar a legalidade do investimento público.
Essa iniciativa do Poder Público seria vista como uma forma de promover a cidadania através da cultura, concretizando ao dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal, em seu artigo 215, assevera que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
A lei nº 12.343/2010 instituiu o Plano Nacional de Cultura – PNC, e criou o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC.
E dentre as competências do Poder Público voltadas para a cultura e elencadas na lei nº 12.343/2010, podemos destacar:
- Fomentar a cultura de forma ampla, por meio da promoção e difusão, da realização de editais e seleções públicas para o estímulo a projetos e processos culturais, da concessão de apoio financeiro e fiscal aos agentes culturais, da adoção de subsídios econômicos, da implantação regulada de fundos públicos e privados, entre outros incentivos;
- Proteger e promover a diversidade cultural, a criação artística e suas manifestações e as expressões culturais, individuais ou coletivas, de todos os grupos étnicos e suas derivações sociais, reconhecendo a abrangência da noção de cultura em todo o território nacional e garantindo a multiplicidade de seus valores e formações;
- Promover e estimular o acesso à produção e ao empreendimento cultural; a circulação e o intercâmbio de bens, serviços e conteúdos culturais; e o contato e a fruição do público com a arte e a cultura de forma universal;
A contratação de shows de artistas consagrados pode ser enquadrada legalmente como inexigibilidade de licitação, ou seja, a contratação direta, conforme prevê a Nova Lei das Licitações (Lei nº 14.133/2021).
Críticos do financiamento público de shows
Já aqueles que criticam a postura pública de financiamento de grandes shows argumentam que a iniciativa privada é quem deveria arcar com 100% desses custos. O dinheiro público deveria ser reservado para as necessidades mais prementes da população, como saúde, educação, segurança, saneamento básico.
O evento seria muito bem-vindo, mas desde que custeado com verba exclusivamente privada, já que não é papel do Estado promover shows e baladas.
Apesar de não haver norma explícita proibindo essa prática, a medida viola, para esta corrente, os princípios da moralidade e da eficiência, exigidos pelo artigo 37, da Constituição Federal.
CF/88
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”
O princípio da moralidade administrativa exige que os agentes públicos atuem de maneira ética, proba, com boa-fé, sob pena de afronta à Constituição e cometimento de improbidade administrativa.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, de forma brilhante, leciona:
“Sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do Administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa”
O princípio da moralidade administrativa pode ser entendido sob três aspectos distintos 1:
a) Dever de atuação ética (princípio da probidade): o agente público deve ter um comportamento ético, transparente e honesto perante o administrado. Assim, o agente público não pode sonegar, violar nem prestar informações incompletas com o objetivo de enganar os administrados. Não pode um agente se utilizar do conhecimento limitado que as pessoas têm sobre a administração para obter benefícios pessoais ou prejudicar indevidamente o administrado;
b) Concretização dos valores consagrados na lei: o agente público não deve limitar-se à aplicação da lei, mas buscar alcançar os valores por ela consagrados. Assim, quando a Constituição institui o concurso público para possibilitar a isonomia na busca por um cargo público, o agente público que preparar um concurso dentro desses ditames (proporcionar a isonomia) estará também cumprindo o princípio da moralidade;
c) Observância dos costumes administrativos: a validade da conduta administrativa se vincula à observância dos costumes administrativos, ou seja, às regras que surgem informalmente no quotidiano administrativo a partir de determinado condutas da Administração. Assim, desde que não infrinja alguma lei, as práticas administrativas realizadas reiteradamente, devem vincular a Administração, uma vez que causam no administrado um aspecto de legalidade.
Portanto, a destinação de verba pública para grandes artistas é vista, por esses críticos, como afronta ao princípio da moralidade administrativa.
Conclusão
De fato, não há norma proibindo a contratação de artistas ou o financiamento público de eventos culturais. O que deve ser observado é a obediência às normas sobre contratação pública, com a adequada motivação e com a aplicação correta de recursos orçamentários.
Podem ser realizados estudos de impactos econômicos desse financiamento público, onde são estimados os impactos positivos e negativos que serão observados em decorrência de determinado evento, ainda que por período determinado, naquela localidade.
A aplicação inadequada de recursos públicos, inclusive por meio da utilização de verbas destinadas a outras finalidades, pode ser investigada pelo Ministério Público e, eventualmente, gerar responsabilização dos agentes envolvidos.
O tema é controvertido, e o debate expõe prós e contras dos dois lados. Tema interessante para provas de direito administrativo e constitucional.
- [1] https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-principio-da-moralidade-administrativa/433140195 ↩︎
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