Filho em surto mata ex-deputado do PT: pena ou medida de segurança?

Filho em surto mata ex-deputado do PT: pena ou medida de segurança?

Prof. Gustavo Cordeiro

A trágica morte do ex-deputado estadual Paulo Frateschi, esfaqueado pelo próprio filho Francisco durante um episódio de surto psicótico, reacendeu um debate relevante para concursos jurídicos de alto nível: como o sistema penal brasileiro responde quando o autor de um crime age sob influência de transtorno mental grave? A resposta a essa pergunta exige domínio técnico sobre inimputabilidade, medidas de segurança e suas peculiaridades processuais – temas recorrentes em provas de Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Delegado.

Este caso concreto oferece uma oportunidade didática para revisitar institutos fundamentais do Direito Penal e Processual Penal, conectando teoria, jurisprudência e questões práticas de concurso.

O surto psicótico e a inimputabilidade: fundamentos do art. 26 do Código Penal

O Código Penal brasileiro adota o sistema biopsicológico para aferir a imputabilidade. Não basta a existência de doença mental (critério biológico); é imprescindível que, ao tempo da conduta, o agente fosse inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se conforme esse entendimento (critério psicológico).

No caso de Francisco Frateschi, as notícias apontam que ele estava em “surto” durante a agressão. Surtos psicóticos caracterizam-se por perda temporária do contato com a realidade, delírios, alucinações e incapacidade de controlar impulsos. Se comprovado por perícia que, no momento do homicídio, Francisco estava inteiramente incapaz de compreender a ilicitude ou de controlar sua conduta, ele será considerado inimputável (art. 26, caput, CP).

Atenção: não se trata de transtorno mental permanente. O surto pode ser episódico. O que importa é a capacidade ao tempo da ação. Por isso, a perícia psiquiátrica é indispensável e deve responder aos quesitos biopsicológicos.

Distinguindo inimputabilidade de semi-imputabilidade

Candidatos devem dominar a diferença:

  • Inimputável (art. 26, caput): inteiramente incapaz → absolvição imprópria → medida de segurança
  • Semi-imputável (art. 26, parágrafo único): capacidade reduzida → condenação com pena reduzida (1/3 a 2/3) → sistema vicariante: juiz escolhe entre pena reduzida OU substituição por medida de segurança (art. 98, CP)

No caso concreto, se Francisco estava em surto total, será inimputável. Se tinha alguma capacidade diminuída, seria semi-imputável.

Inimputável não recebe pena: a absolvição imprópria

Aqui reside uma pegadinha clássica de concurso: o inimputável não é condenado. Ele é absolvido, mas com aplicação de medida de segurança. O CPP denomina isso “absolvição imprópria” (art. 386, parágrafo único, III, CPP).

medida de segurança

Por quê? Porque a culpabilidade é um dos elementos do conceito analítico de crime. Sem imputabilidade, não há culpabilidade. Sem culpabilidade, não há crime. Logo, não há condenação, mas absolvição com consequência terapêutica.

A sentença reconhecerá:

  • A materialidade e autoria do fato típico e ilícito
  • A ausência de culpabilidade (inimputabilidade)
  • Absolvição do acusado
  • Imposição de medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial)

Internação ou tratamento ambulatorial? A quebra do critério rígido pelo STJ

O art. 97, caput, do CP prevê que, se o fato for punível com reclusão, a medida de segurança será de internação. Se punível com detenção, o juiz poderá optar por tratamento ambulatorial.

Homicídio qualificado = reclusão → regra antiga: internação obrigatória.

Mas atenção: o STJ superou essa interpretação literal nos EREsp 998.128/MG (Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/12/2019, Informativo 652). Conforme jurisprudência pacificada na Terceira Seção, o juiz tem discricionariedade fundamentada para escolher entre internação e tratamento ambulatorial, independentemente da pena abstrata, desde que considere a periculosidade concreta do agente, à luz dos princípios da adequação, razoabilidade e proporcionalidade.

Ratio decidendi: a medida de segurança deve ser proporcional à necessidade terapêutica, não à gravidade abstrata do crime. Padronizar a resposta apenas pela natureza da pena (reclusão/detenção) viola a individualização e a dignidade da pessoa humana.

Aplicação prática: mesmo em caso de homicídio (reclusão), se a perícia indicar que Francisco não apresenta periculosidade elevada e pode ser tratado ambulatorialmente, o juiz poderá optar por essa medida menos gravosa.

Procedimento do júri e inimputabilidade: absolvição sumária ou pronúncia?

Outro ponto sensível: Francisco será julgado pelo Tribunal do Júri (crime doloso contra a vida). Como proceder na primeira fase se ficar comprovada a inimputabilidade?

Regra geral (art. 415, IV, CPP): demonstrada causa de exclusão do crime ou isenção de pena, o juiz absolve sumariamente o acusado.

Exceção específica (art. 415, parágrafo único, CPP): não se aplica a absolvição sumária ao inimputável (art. 26, caput, CP), salvo quando a inimputabilidade for a única tese defensiva.

Traduzindo: se a defesa alega apenas inimputabilidade (não há negativa de autoria, legítima defesa etc.), o juiz pode absolver sumariamente já na primeira fase. Mas se houver teses concorrentes (por exemplo, alegação subsidiária de legítima defesa putativa), o réu deve ser pronunciado e a questão da inimputabilidade será decidida pelo Conselho de Sentença.

Cuidado: essa regra é específica do Júri. Não se aplica ao procedimento comum.

Prisão preventiva ou internação provisória? A medida cautelar do art. 319, VII, CPP

Durante a investigação ou processo, Francisco pode ser submetido à internação provisória (art. 319, VII, CPP), que é uma medida cautelar diversa da prisão.

Requisitos:

  • Crime praticado com violência ou grave ameaça
  • Laudo pericial concluindo pela inimputabilidade ou semi-imputabilidade
  • Risco de reiteração

Diferença fundamental: não é prisão preventiva (art. 312, CPP). É medida terapêutica cautelar. Francisco ficará internado provisoriamente em hospital de custódia ou estabelecimento adequado, aguardando julgamento.

Prazo da medida de segurança: o fim do caráter perpétuo

Importante: a medida de segurança não é perpétua. O art. 97, §1º, estabelece prazo mínimo (1 a 3 anos), mas historicamente havia controvérsia sobre o prazo máximo.

Jurisprudência consolidada do STJ:

  1. Sistema vicariante: quando a medida de segurança substitui pena já em execução, o prazo máximo é o da pena originalmente fixada
  2. Absolvição imprópria desde o início: prazo máximo de 40 anos (analogia ao art. 75, CP)
  3. Impossibilidade de prorrogação indefinida: ultrapassado o prazo máximo, cessa a intervenção penal do Estado, independentemente de cessação da periculosidade (HC 130.162/STJ)

Se necessário tratamento posterior, a família ou o Ministério Público devem buscar a interdição civil, não a manutenção indefinida da medida de segurança.

Execução provisória de medida de segurança: inadmissível

Questão de prova comum: pode haver cumprimento provisório de medida de segurança antes do trânsito em julgado?

Resposta: NÃO (HC 226.014/STJ). A medida de segurança é espécie de sanção penal. Aplica-se o mesmo raciocínio da pena privativa de liberdade: só há execução após o trânsito em julgado.

Exceção: a internação provisória (art. 319, VII, CPP) pode ser decretada cautelarmente, mas não se confunde com execução antecipada da medida de segurança definitiva.

Resumo estratégico para memorização

Inimputável por doença mental:

  • Absolvição imprópria (não é condenação)
  • Medida de segurança: internação OU tratamento ambulatorial (discricionariedade judicial fundamentada, independentemente de ser reclusão/detenção) – EREsp 998.128/MG
  • Prazo: mínimo de 1-3 anos; máximo definido por analogia (30 anos ou pena originária no sistema vicariante)
  • Procedimento do Júri: pronúncia, salvo se inimputabilidade for tese única
  • Cautelar: internação provisória (art. 319, VII), não prisão preventiva
  • Execução provisória: inadmissível

Questões de Concurso

Questão 1 - CESPE/CEBRASPE (MPE-SC - 2021 - Promotor de Justiça Substituto)

Considerando a Parte Geral do Código Penal e a jurisprudência dos tribunais superiores aplicável, julgue o item a seguir:

O juiz deverá, obrigatoriamente, determinar a internação do agente inimputável que tiver praticado crime punível com pena de reclusão.

( ) Certo
( ) Errado

GABARITO: ERRADO.
Justificativa:

Embora o art. 97, caput, do CP estabeleça que “se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação” em casos de crimes puníveis com reclusão, o STJ firmou entendimento mais garantista. No julgamento dos EREsp 998.128/MG (Rel. Min. Ribeiro Dantas, 18/12/2019, Informativo 652), a Terceira Seção consolidou que cabe ao julgador avaliar qual espécie de medida de segurança é mais adequada, podendo optar pelo tratamento ambulatorial mesmo em crimes apenados com reclusão, desde que considere a periculosidade concreta do agente e os princípios da adequação, razoabilidade e proporcionalidade. A internação não é, portanto, obrigatória.

Questão 2 - Simulado Autoral

Francisco, durante surto psicótico agudo, matou seu pai a facadas. Laudo pericial concluiu que, ao tempo da ação, Francisco era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato. Acerca do caso, assinale a alternativa correta:

a) Francisco deve ser condenado por homicídio qualificado, com redução de pena de um a dois terços em razão da perturbação mental.

b) Francisco deve ser absolvido de forma imprópria, com imposição obrigatória de internação em hospital de custódia, por tratar-se de crime punível com reclusão.

c) Francisco deve ser absolvido de forma imprópria, podendo o juiz, fundamentadamente, optar entre internação ou tratamento ambulatorial, independentemente da pena cominada ao crime, conforme entendimento do STJ nos EREsp 998.128/MG.

d) Durante o processo, Francisco pode cumprir provisoriamente medida de segurança, desde que haja autorização judicial fundamentada.

e) Na primeira fase do procedimento do Júri, Francisco será necessariamente pronunciado, pois a inimputabilidade é matéria a ser decidida pelos jurados.

GABARITO: C.
Justificativa:

a) INCORRETA. A alternativa confunde inimputabilidade (art. 26, caput) com semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo único). Se Francisco era inteiramente incapaz, não há culpabilidade, logo não há condenação. Ele será absolvido impropriamente, não condenado com pena reduzida.

b) INCORRETA. Embora o homicídio seja punível com reclusão, o STJ pacificou nos EREsp 998.128/MG (Informativo 652) que o juiz tem discricionariedade para escolher entre internação e tratamento ambulatorial, considerando a periculosidade concreta e os princípios da adequação e proporcionalidade. Não há mais interpretação literal do art. 97, caput, do CP.

c) CORRETA. Esta é a posição consolidada do STJ (Terceira Seção) nos EREsp 998.128/MG: o magistrado pode optar por tratamento ambulatorial mesmo em crimes apenados com reclusão, desde que fundamentadamente avalie a periculosidade e a adequação terapêutica.

d) INCORRETA. Não existe “cumprimento provisório” de medida de segurança. O que pode ocorrer é a decretação de internação provisória como medida cautelar (art. 319, VII, CPP), mas isso não se confunde com execução antecipada da medida de segurança definitiva, que só ocorre após trânsito em julgado (HC 226.014/STJ).

e) INCORRETA. O art. 415, parágrafo único, do CPP ressalva que, se a inimputabilidade for a única tese defensiva, o juiz pode absolver sumariamente já na primeira fase. Apenas se houver teses defensivas concorrentes (negativa de autoria, legítima defesa etc.) é que o réu será pronunciado e a questão da inimputabilidade será levada aos jurados.

Conclusão estratégica

O caso de Francisco Frateschi é um exemplo didático perfeito de como a teoria penal se conecta à prática forense e às provas de concurso. Dominar a distinção entre inimputabilidade e semi-imputabilidade, compreender a flexibilização jurisprudencial do art. 97 do CP (especialmente após os EREsp 998.128/MG), e conhecer as nuances processuais (especialmente no Júri e quanto às cautelares) são competências essenciais para carreiras jurídicas de elite.

Memorize: inimputável não é condenado, é absolvido impropriamente. A medida de segurança não é pena, é resposta terapêutica. E a jurisprudência do STJ humanizou o sistema, permitindo tratamento ambulatorial mesmo em crimes graves, desde que proporcional.


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