Prof. Gustavo Cordeiro
Pode uma família substituta ter preferência sobre a família extensa na colocação de crianças? Esta questão, que tradicionalmente recebia resposta negativa com base na “prioridade absoluta” da família natural/extensa, ganhou nova perspectiva com a decisão da Quarta Turma do STJ no Informativo 860, de 2 de setembro de 2025.

O caso envolveu uma criança prematura com graves problemas de saúde que passou quase todo o primeiro ano de vida com uma família substituta, desenvolvendo vínculos socioafetivos consistentes. Quando a Justiça determinou sua entrega à tia-avó (família extensa), os problemas de saúde se agravaram pela ausência de cuidados adequados.
A decisão do STJ, por unanimidade, estabeleceu que o princípio da prioridade da família extensa não é absoluto e deve ceder quando o melhor interesse da criança exigir sua permanência com a família substituta que demonstrou cuidados adequados e formou laços socioafetivos consistentes.
O que diz o ECA: a hierarquia legal e seus princípios
A regra geral da prevalência familiar
O ECA estabelece uma clara hierarquia de preferências no art. 100, parágrafo único, inciso X: deve ser dada prevalência às medidas que mantenham ou reintegrem a criança na família natural ou extensa ou, se isso não for possível, que promovam sua integração em família adotiva.
As definições legais de família
- Família Natural (art. 25, caput): Comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
- Família Extensa (art. 25, parágrafo único): Aquela que se estende para além da unidade pais e filhos, formada por parentes próximos com os quais a criança convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
- Família Substituta (art. 28): Colocação mediante guarda, tutela ou adoção, considerando grau de parentesco e relação de afinidade ou afetividade.
A excepcionalidade da adoção
O art. 39, § 1º estabelece que a adoção é medida excepcional à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção na família natural ou extensa.
A decisão do STJ: quando a afetividade supera o parentesco
O caso concreto paradigmático
- Criança nasceu prematura com múltiplas comorbidades
- Mãe usou drogas durante a gestação
- Criança foi para acolhimento institucional
- Posteriormente, guarda provisória para família substituta
- Permaneceu quase todo o primeiro ano de vida com família substituta
- Justiça determinou entrega à tia-avó (família extensa)
- Após a entrega, agravamento recorrente do estado de saúde
- Ausência de cuidados necessários pela tia-avó
Os fundamentos da decisão
1. Questionamento da própria configuração de família extensa
O STJ apontou ser duvidosa a classificação da tia-avó como família extensa, considerando a inexistência pretérita de convivência ou afinidade, conforme exige o art. 25, parágrafo único.
Elementos ausentes:
- Convivência anterior
- Vínculos de afinidade preexistentes
- Vínculos de afetividade consolidados
2. Formação de vínculo socioafetivo com família substituta
A família substituta conviveu com a criança por basicamente todo seu primeiro ano de vida, período decisivo para:
- Construção de forte relação socioafetiva
- Prestação de cuidados especializados para sua condição de saúde
- Desenvolvimento de vínculos de afinidade e afetividade (art. 28, § 3º)
3. Princípio do melhor interesse da criança
O STJ aplicou concretamente o princípio do melhor interesse, considerando:
- Necessidades especiais de saúde da criança
- Cuidados adequados prestados pela família substituta
- Agravamento da saúde após entrega à família extensa
- Resistência da própria tia-avó em receber a criança
A nova interpretação: prioridade não absoluta
O precedente citado: HC 933.391/SP
O STJ referenciou decisão anterior da Ministra Nancy Andrighi (Terceira Turma, março/2025) que já havia estabelecido a necessidade de analisar o caso concreto e não aplicar o princípio da prioridade da família natural ou extensa de modo absoluto.
Critérios para excepcionar a regra
Com base na decisão, é possível extrair os seguintes critérios:
1. Inexistência de vínculo prévio com família extensa:
- Ausência de convivência anterior
- Falta de vínculos de afinidade
- Ausência de vínculos afetivos preexistentes
2. Formação consistente de laço socioafetivo:
- Convivência prolongada com família substituta
- Período significativo de cuidados (no caso, quase um ano)
- Desenvolvimento de vínculos afetivos sólidos
3. Cuidados adequados às necessidades especiais:
- Atenção às condições específicas da criança
- Cuidados de saúde apropriados
- Ambiente adequado ao desenvolvimento
4. Demonstração concreta do melhor interesse:
- Evidências objetivas de que a permanência é mais benéfica
- Comparação entre os ambientes oferecidos
- Análise dos resultados práticos de cada colocação
Casos práticos: aplicando a nova orientação
Situação 1: família substituta prevalece
Caso: Bebê abandonado na maternidade fica dois anos com família acolhedora. Desenvolve vínculos fortes, tem necessidades médicas especiais bem atendidas. Surge avó materna que nunca teve contato com a criança e mora em cidade distante sem recursos médicos adequados.
Análise: Família substituta deve prevalecer. A avó, embora seja família extensa formal, não tem vínculos preexistentes. A criança desenvolveu laços socioafetivos com a família acolhedora que atende adequadamente suas necessidades.
Situação 2: família extensa mantém prioridade
Caso: Criança de 5 anos é retirada dos pais por negligência. Avós paternos que sempre tiveram convivência semanal se oferecem para guarda. Há também família habilitada interessada.
Análise: Família extensa (avós) deve ter prioridade. Existem vínculos preexistentes, convivência anterior e capacidade de cuidado. A regra geral do ECA deve ser mantida.
Situação 3: análise complexa necessária
Caso: Adolescente de 14 anos vive com tios desde os 8 anos (família extensa). Desenvolve problemas comportamentais graves. Surge família substituta especializada em adolescentes com dificuldades.
Análise: Requer análise multidisciplinar. Embora haja família extensa constituída, o melhor interesse pode exigir colocação especializada, especialmente se os tios não conseguem lidar adequadamente com os problemas.
Questão comentada estilo concurso
(VUNESP - Adaptada) Sobre a colocação em família substituta no ECA, analise as assertivas: I. A prioridade da família extensa é absoluta, não admitindo exceções. II. Família extensa exige vínculos de convivência, afinidade ou afetividade preexistentes. III. O melhor interesse da criança pode justificar manutenção com família substituta. IV. O tempo de convivência é irrelevante para formação de vínculos socioafetivos. Estão corretas: A) Apenas I e IV B) Apenas II e III C) Apenas I, II e III D) Apenas II, III e IV E) Todas as assertivas Gabarito: B.
- I. INCORRETA: STJ estabeleceu que a prioridade não é absoluta, admite exceções baseadas no melhor interesse.
- II. CORRETA: Art. 25, parágrafo único, exige vínculos de afinidade e afetividade preexistentes.
- III. CORRETA: Princípio do melhor interesse pode justificar permanência com família substituta.
- IV. INCORRETA: Tempo de convivência é fundamental para formação de vínculos socioafetivos.
Fechamento estratégico: a nova realidade do ECA
A decisão do STJ representa uma evolução interpretativa importante no Direito da Criança e do Adolescente. Não abandona a prioridade da família natural/extensa, mas relativiza sua aplicação quando o caso concreto demonstra que o melhor interesse da criança exige solução diversa.
A mensagem é clara: o ECA privilegia o melhor interesse da criança, não a satisfação dos adultos ou a aplicação mecânica de regras. Quando os vínculos socioafetivos e os cuidados adequados estão consolidados com família substituta, estes podem prevalecer sobre parentesco formal sem vínculos efetivos.
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