Advogada é algemada por guardas municipais durante assistência jurídica – e pode?

Advogada é algemada por guardas municipais durante assistência jurídica – e pode?

Um caso recentemente ocorrido no Rio de Janeiro, envolvendo a prisão de uma advogada durante o exercício profissional, mexeu nas redes sociais, veja o vídeo:

Em breve síntese, o caso traz à tona questões fundamentais sobre as prerrogativas da advocacia e os limites do poder de polícia administrativa.

Preste atenção no diálogo do guarda municipal colocando as algemas na advogada:

- “A senhora me desacatou, me injuriou e a senhora está resistindo...”
Exercício da advocacia e os limites do poder de polícia administrativa
Pergunta-se: a advogada pode ser presa por desacato?
Pergunta-se: a advogada pode ser algemada nesse caso?

De início, vamos contextualizar o caso.

O que se tem registrado nos sites é que a advogada foi algemada e conduzida à delegacia por guardas municipais enquanto prestava assistência jurídica a um comerciante que teve mercadorias apreendidas.

Em resumo, o incidente ocorreu após a profissional questionar procedimentos administrativos, especificamente a ausência de lacres regulamentares nas mercadorias apreendidas.

A cliente dela estava tendo os objetos retidos pela prefeitura municipal. Daí, ela ligou para a advogada prestar assistência jurídica diante da atuação imediata da polícia.

Das prerrogativas da advocacia: fundamentos constitucionais e legais

Como é cediço, a Constituição Federal estabelece em seu artigo 133 que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

Além disso, este dispositivo constitucional é regulamentado pela Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), que estabelece um conjunto robusto de prerrogativas profissionais.

Vamos aprofundar, o artigo 7º do Estatuto da Advocacia merece especial atenção:

"Art. 7º São direitos do advogado:

I - exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional; [...]

§ 3º O advogado somente poderá ser preso em flagrante delito, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto no inciso IV deste artigo."

Conforme a doutrina, esta proteção legal não configura privilégio pessoal, mas garantia para o exercício independente da advocacia, essencial para a defesa dos direitos dos cidadãos.

Assim, guarde, a advogada somente pode ser presa se cometer um crime em flagrante delito e caso de crime inafiançável.

De outro lado, o artigo 7º do Estatuto da Advocacia estabelece em seu inciso IV:

"Art. 7º São direitos do advogado: [...]

IV - ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB;"

Em outras palavras, exige-se presença física do representante da OAB, de maneira que a ausência gera nulidade do auto de prisão. Isto é, o representante deve acompanhar toda a lavratura do auto.

Do crime de desacato

Além disso, vale frisar que o suposto desacato, tipificado no artigo 331 do Código Penal, prevê:

"Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa."

E ele continua sendo crime?

Sim!

A norma do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato, foi recepcionada pela Constituição de 1988.

Vamos analisar o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF).

Entendimento do STF

Em uma arguição de descumprimento de preceito fundamental em que se questionava a conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como a recepção pela Constituição de 1988, do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato, o STF posicionou-se sobre o tema, conforme o voto do Min. Roberto Barroso.

À luz do entendimento do Relator, de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, em casos de grave abuso, é legítima a utilização do direito penal para a proteção de outros interesses e direitos relevantes.

Inclusive, a diversidade de regime jurídico – inclusive penal – existente entre agentes públicos e particulares é uma via de mão dupla: as consequências previstas para as condutas típicas são diversas não somente quando os agentes públicos são autores dos delitos, mas, de igual modo, quando deles são vítimas.

Aliás, o próprio STF reiterou seu pensamento:

A criminalização do desacato não configura tratamento privilegiado ao agente estatal, mas proteção da função pública por ele exercida.
Vale ressaltar, no entanto, que, considerando que os agentes públicos em geral estão mais expostos ao escrutínio e à crítica dos cidadãos, deles se exige maior tolerância à reprovação e à insatisfação, limitando-se o crime de desacato a casos graves e evidentes de menosprezo à função pública.
STF. Plenário. ADPF 496, Rel. Roberto Barroso, julgado em 22/06/2020 (Informativo 992).

No voto do Ministro Relator, mencionou-se que a interpretação do art. 331 do CP deve ser restritiva, com a fixação de quatro critérios interpretativos:

  1. o crime deve ser praticado na presença do funcionário público;
  2. não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função;
  3. é necessário que o ato perturbe ou obstrua a execução das funções do funcionário público;
  4. devem ser relevados, portanto, eventuais excessos na expressão da discordância, indignação ou revolta com a qualidade do serviço prestado ou com a atuação do funcionário público.

Para maior aprofundamento, veja aqui: Desacato continua sendo crime.

Tá, professor, mas e o caso concreto, parece ser desacato?

Ora, é fundamental ressaltar que haver o questionamento técnico de alguns procedimentos administrativos, não configura desacato.

O Superior Tribunal de Justiça tem precedentes nesse sentido: “o exercício da advocacia, ainda que contundente, não caracteriza o crime de desacato quando voltado à defesa dos interesses do constituinte” (HC 379.269/MS)

E sobre o uso de algemas

Por fim, vale salientar que a Súmula Vinculante 11 do STF estabelece requisitos claros para o uso de algemas:

"Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito."

No caso em análise, aparentemente, nenhum destes requisitos estava presente, configurando flagrante ilegalidade.

Isto porque, não parece, no vídeo, que a advogada “resistiu” a prisão, em que pese a fala do guarda municipal.

Como o tema já caiu em provas

CONSULPLAN - 2023 - TJ-AC - Titular de Serviços de Notas e de Registros - Provimento

No que concerne ao crime de desacato, assinale a afirmativa correta.

Alternativas

A) Só pode ser praticado por ação, nunca por omissão.

B) Se o funcionário público não estiver no regular exercício de sua função, mas for ofendido em razão dela, não se configura o crime.

C) O delito é formal, consumando-se no momento em que o funcionário público toma conhecimento (direto) do ato humilhante e ofensivo, pouco importa se efetivamente se sentiu menosprezado ou se agiu com indiferença.

D) Existem defensores de que o crime de desacato seja incompatível com a ordem constitucional e com a legislação internacional de que o Brasil faz parte, e o Superior Tribunal de Justiça – STJ, e Supremo Tribunal Federal – STF, reconhecem que a tipificação do desacato não permanece hígida.

Gabarito: C.

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