O golpe da falsa doença: influencer desvia doações e zomba de seguidores e da própria filha

O golpe da falsa doença: influencer desvia doações e zomba de seguidores e da própria filha

Um influencer brasileiro é acusado de desviar recursos obtidos através de uma vaquinha para o tratamento de sua filha com deficiência, utilizando o dinheiro para outras finalidades. Além disso, ele zombava dos seguidores que doaram, chamando-os de “trouxas”.

A análise jurídica desses fatos revela a prática do crime de estelionato, podendo também configurar injúria qualificada ou discriminação contra pessoa com deficiência. Este artigo explora a tipificação penal, as consequências e a consideração da torpeza do agente na fixação da pena.

Introdução

A reportagem narra que um influencer brasileiro teria feito uma vaquinha para a obtenção de recursos para custeio de tratamento da filha que é pessoa com deficiência. Porém, suspeita-se de um desvio dos valores obtidos para outras finalidades. O rapaz ainda zombava dos seguidores que doaram valores, chamando-os de “trouxas”.

O site informa ainda outros casos no estado de Goiás, em que os suspeitos se aproveitavam da boa-fé das pessoas para conseguir doações, benefícios, cessões de crédito ou serviços gratuitos.

Vamos à análise dos casos, deixando de lado o repúdio natural que situações como essa podem gerar em qualquer um de nós.

Análise jurídica

Crime contra o patrimônio

O nosso Código Penal tem um título inteiro destinado a disciplinar os crimes contra o patrimônio. Dentre as infrações ali previstas estão o furto, o roubo, o estelionato, o dano etc.

Em todos os crimes referidos, o denominador comum é que eles atingem o patrimônio da vítima, ainda que concomitantemente à integridade física ou à vida, como no caso do roubo e do latrocínio, que são crimes complexos (atingem mais de um bem jurídico).

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Nas situações narradas, a conduta perpetrada atinge o patrimônio alheio. As pessoas, sensibilizadas com a situação de doença ou de vulnerabilidade dos supostos doentes/afetados, prestam auxílio financeiro, desfalcando, assim, o seu próprio patrimônio.

A entrega do numerário ou de outro bem, que expressa algum valor econômico, se dá de modo voluntário, porém, a partir de uma conduta fraudulenta do agente.

Estelionato

O artigo 171, do Estatuto Repressivo, tipifica a conduta de

“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

Segundo conta a imprensa, o agente simula uma doença – um câncer, uma paralisia cerebral -, alega a necessidade de um tratamento, valendo-se portanto de meio fraudulento, que induz a vítima em erro (imaginando que a situação, de fato ocorre), para obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio (no estelionato é imprescindível o binômio vantagem ilícita/prejuízo alheio).

E atenção, não sendo ilícita a vantagem, poderíamos pensar no crime de exercício arbitrário das próprias razões.

As doações, benefícios, cessões de crédito ou serviços obtidos de forma gratuita são mensuráveis economicamente. É possível medir uma transferência bancária, o fornecimento de mantimentos, fármacos etc., pelo equivalente em dinheiro, representando uma perda patrimonial para a vítima, e, de outro lado, uma vantagem ilícita ao agente.

Requisitos do crime de estelionato

Mas isso não basta à caracterização do crime de estelionato. É necessário que a vítima seja induzida ou mantida em erro (consistente na falsa percepção da realidade), por artifício, ardil, ou meio fraudulento (a fraude é gênero e o artifício e o ardil são espécies).

No caso, a ideia de manutenção da vítima em erro tem como reforço a conduta da agente, que inclusive simulava o tratamento quimioterápico.

Feita essa análise detalhada da conduta, é possível subsumi-la ao crime de estelionato, que tem uma pena de reclusão de um a cinco anos.

Admite-se, em princípio, a suspensão condicional do processo e o acordo de não persecução penal, em razão da quantidade de pena abstratamente cominada à infração (artigo 89, da Lei 9.099/95 e 28-A, do CPP).

Interessante anotar que para cada vítima enganada temos uma infração autônoma. Assim, é possível pensar, em tese, na aplicação da figura do crime continuado, nos termos do artigo 71, do CP.

A competência para processar e julgar a infração é ditada nos termos do artigo 70, do CP, teoria do resultado, salvo se o crime for praticado mediante depósito ou transferência de valores, quando ela será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, pela prevenção, conforme  §4º, do artigo 70.

Torpeza

Ok, mas simplesmente despreza-se a torpeza do agente para fins de quantificação da pena?

Vejamos. O crime de estelionato já pressupõe a torpeza, portanto o legislador já levou essa circunstância em consideração para estabelecer a pena em abstrato.

A toda evidência, o desprezo do agente pelo sentimento de humanidade alheio não pode ser ignorado pelo juiz por ocasião da fixação da pena base. Isso porque, nos termos do artigo 59, do CP: a culpabilidade revela-se acentuada, podendo o juiz elevar a pena, sobretudo diante do pronunciamento do agente que, além de enganar as vítimas, ainda as chamou de “trouxas”.

Ah, e não vamos nos esquecer de um dado importante. A reportagem dá conta de que o influencer zombava da filha deficiente (com paralisia cerebral). Não se sabe o teor das falas, tampouco o contexto. Porém, é bom lembrar que a conduta pode caracterizar o crime de injúria qualificada (artigo 140, §3º, do CP) ou mesmo o crime de discriminação de pessoa em razão de sua deficiência (artigo 88, da Lei 13.146/15).

Nesse caso, teríamos a aplicação da regra do concurso material de infrações, em relação ao estelionato, conforme artigo 69, do CP.


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