Estagiária da Justiça Federal é suspeita de vazar informações sigilosas ao PCC. Investigação aponta possíveis ligações com a facção criminosa e uso indevido de dados internos.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
Uma estagiária da Justiça Federal foi presa pela Polícia Civil de Santa Catarina por ter acessado o sistema federal, ao menos três vezes, e repassado informações para membros do PCC. A estudante universitária, de 23 anos, cursa o 8º semestre de direito em uma universidade privada.
Os agentes da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado – DRACO – também apreenderam dois computadores e dois aparelhos celulares, que serão periciados para auxiliar no decorrer das investigações.
As investigações apuraram que a estagiária acessou, sem autorização, processos sigilosos de três delegacias especializadas em investigações do tráfico de drogas e organizações criminosas, envolvendo pessoas associadas a facções criminosas.
A Polícia Civil chegou à estagiária por meio de equipamentos eletrônicos e documentos apreendidos em posse de outra estagiária, presa em agosto de 2024.
Em nota, a Justiça Federal informou que
“o perfil de usuário afeto a estagiários não permite o acesso a processos sigilosos, tais como operações policiais em curso; não obstante, foi bloqueado o acesso da investigada a todos os sistemas da instituição, bem como determinada a suspensão cautelar do contrato de estágio”, e que a Justiça Federal de Santa Catarina “encontra-se à disposição da autoridade policial para colaborar com as investigações, sem prejuízo das apurações administrativas cabíveis”.
Segundo a polícia, a estagiária da Justiça Federal deve responder por associação ao tráfico, organização criminosa e violação de sigilo funcional.
Relembre o caso
A Polícia Civil descobriu, em agosto de 2024, que uma estagiária da vara de família de Florianópolis estava vazando informações sigilosas para criminosos faccionados alvos da “Operação Tio Patinhas”, em combate ao tráfico de drogas.
Os esforços das forças policiais resultaram na expedição de mais de 70 ordens judiciais (mandados de busca e apreensão, sequestro de bens e valores), mas a operação restou gravemente comprometida em decorrência do vazamento das informações para os criminosos.
As informações passadas pela estagiária da vara da família acabaram facilitando a fuga de vários suspeitos. Suspeita-se que ela teve ajuda de advogados também ligados à organização criminosa.
A estagiária, que à época cursava o 7º período de direito, foi responsável por desmanchar 90% da Operação Tio Patinhas
O delegado do caso, Antônio Cláudio Seixas Joca, ressaltou que eram 45 investigados na operação, mas, durante o cumprimento dos mandados, apenas cinco foram localizados nos endereços, e tudo isso por causa das informações vazadas, já que a estudante havia acesso informações relevantes no fim de semana anterior ao da deflagração da operação.
A Operação Tio Patinhas é fruto de uma investigação que mira um grupo especializado em tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e venda de armas, e que tinha como clientes figuras muito ricas do Estado.
Na primeira etapa da Operação, duas pessoas foram detidas, e na segunda, cinco pessoas foram presas em flagrante por tráfico de drogas e 6kg de drogas foram apreendidos.
Análise Jurídica
A estagiária da Justiça Federal, presa recentemente, vai responder pelos seguintes crimes:
- Associação ao tráfico;
- Organização criminosa; e
- Violação de sigilo funcional.
Vejamos cada um dos crimes em detalhes.
Associação ao Tráfico
O tipo fundamental do crime de associação para o tráfico de drogas está previsto no art. 35, da Lei 11.343/06.
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.
- Segundo o STJ (AgRg no HC 509521), para a caracterização do crime de associação para o tráfico é imprescindível o dolo de se associar com estabilidade e permanência, sendo que a reunião ocasional de duas ou mais pessoas não se subsume ao tipo penal.
- Segundo o STJ (RHC 93498), para a configuração do crime de associação para o tráfico de drogas ou mesmo do delito de organização criminosa voltada para o narcotráfico é irrelevante o fato de o réu estar ou não na posse direta da droga. Mostra-se suficiente, portanto, que o agente haja concorrido, de alguma forma, para a prática do delito.
- Segundo o STJ, a configuração do crime de associação para o tráfico é suficiente para afastar a aplicação da causa especial de diminuição de pena contida no § 4º, do art. 33, na medida em que evidencia a dedicação do agente à atividade criminosa.
- Segundo o STJ (HC 537943), o crime de associação para o tráfico não é equiparado a hediondo, uma vez que não está expressamente elencado no rol taxativo do art. 2º, da Lei n.º 8.072/1990.
- Segundo o STJ (AgRg no HC 685282), deve ser aplicado o princípio da especialidade, com adoção da expressa previsão legal contida no parágrafo único, do artigo 44, da Lei n. 11.343/06, que exige o cumprimento de 2/3 da pena para o deferimento do benefício do livramento condicional para o crime de associação para o tráfico de drogas.
Organização Criminosa
O tipo fundamental do crime de organização criminosa está previsto no art. 2º, da Lei 12.850/13.
Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
Não confundir associação criminosa com organização criminosa.
Associação criminosa | Organização criminosa |
Código Penal (art. 288) | Lei nº 12.850/2013 |
3 ou mais pessoas | 4 ou mais pessoas |
A associação deve ter a finalidade específica de cometer crimes | * Estrutura ordenada;* Divisão de tarefas, ainda que informalmente;* Objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem mediante a prática de infrações penais com penas máximas superiores a 4 anos, ou que sejam de caráter transnacional. |
Violação de Sigilo Funcional
O tipo fundamental do crime de violação de sigilo funcional está previsto no art. 325, do código penal.
Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem:
I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública;
II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito.
§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
A conduta criminosa pode ocorrer de duas formas:
- Revelar diretamente a informação sigilosa
- Facilitar que outros tenham acesso ao segredo
O crime ocorre quando a informação sigilosa é divulgada ou quando se criam condições para sua divulgação, mesmo sem prejuízo à Administração Pública.
Conclusão – Estagiária da Justiça Federal
Infelizmente, tem se tornado cada vez mais comum a utilização, pelas organizações criminosas, de funcionário públicos ou estagiários do Poder Judiciário como instrumentos para obtenção de informações sigilosas e relevantes acerca de investigações, o que deve ser combatido de forma dura a fim de evitar a ineficácia das operações policiais e a consequente impunidade.
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