Prof. Gustavo Cordeiro
Imagine você acordando durante a madrugada e percebendo que alguém está tocando suas partes íntimas. Você estava dormindo profundamente, não teve como reagir, não consentiu com nada. Essa situação assustadora chegou aos tribunais brasileiros e gerou uma pergunta crucial: essa conduta é estupro de vulnerável ou apenas importunação sexual? A diferença é enorme – de 8 a 15 anos de prisão no primeiro caso, contra 1 a 5 anos no segundo. O STJ no Informativo 859/2025 deu uma resposta definitiva que mudará para sempre como vemos esses crimes.
A questão não é apenas acadêmica. Tribunais pelo país inteiro vinham tentando “amenizar” condenações, desclassificando casos graves de estupro de vulnerável para o crime mais leve de importunação sexual. O raciocínio parecia até lógico: “foi só um toque”, “a pessoa acordou”, “não houve violência”. Mas essa lógica estava perigosamente errada, e o STJ explicou exatamente por quê.
O caso que mudou tudo: anatomia de uma decisão histórica
Vamos começar entendendo exatamente o que aconteceu no caso concreto que chegou ao STJ. Um réu foi flagrado tocando a genitália de uma mulher que estava dormindo. A primeira instância, corretamente, condenou por estupro de vulnerável. Mas o tribunal estadual pensou diferente e decidiu “dar uma força” ao réu, desclassificando para importunação sexual.
O raciocínio equivocado do Tribunal Estadual
A corte estadual usou dois argumentos que pareciam fazer sentido, mas estavam completamente errados:
Primeiro argumento: “A vítima estava acordando no momento da prática do delito, então sua percepção podia estar alterada quanto à realidade dos fatos.” Traduzindo: como ela estava acordando, talvez não estivesse totalmente vulnerável. É como dizer que alguém “meio acordado” é “meio protegido” pela lei – um raciocínio que criaria uma zona cinzenta perigosíssima.
Segundo argumento: “Não havia demonstração acerca da sua incapacidade de resistência.” Traduzindo: seria preciso provar que ela realmente não conseguia se defender. É como exigir que a vítima dormindo “prove que estava realmente dormindo” – algo absurdo quando pensamos com clareza.
Aceitar essa lógica seria abrir a porta para relativizações sem fim. Se alguém “meio acordado” não é totalmente vulnerável, então pessoa levemente embriagada também não seria vulnerável? Alguém sonolento por medicamentos não estaria protegido? A consequência seria transformar proteções absolutas em proteções graduais, esvaziando completamente a tutela penal.
A resposta cirúrgica do STJ: desmontando a relativização
O Superior Tribunal de Justiça, pela Quinta Turma, sob a relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, julgado em 5/8/2025, não apenas rejeitou os argumentos do tribunal estadual – os demoliu sistematicamente. A fundamentação foi construída em camadas, cada uma reforçando a anterior.
A lei é clara e não admite interpretação restritiva
O STJ foi direto ao artigo 217-A, parágrafo 1º do Código Penal: “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”
O tribunal destacou duas expressões fundamentais: “Por qualquer outra causa” – A lei deliberadamente usou linguagem amplíssima. Não disse “por algumas causas específicas” ou “em determinadas situações”. Disse QUALQUER outra causa. “Não pode oferecer resistência” – Não falou em “dificuldade de resistir” ou “resistência diminuída”. Disse NÃO PODE, estabelecendo um padrão objetivo e absoluto.
O precedente que confirma o entendimento
O STJ não estava decidindo no vazio. A decisão citou o AgRg no REsp 2.000.918/MG, relatado pelo Ministro Jesuíno Rissato, julgado em 18/11/2022, que já havia enfrentado caso similar: “A conduta perpetrada pelo recorrido não se revelou como sendo um simples ato de ‘importunação’, ao contrário disso, evidencia-se claramente no sentido de dar contorno e características de ato libidinoso diverso da conjunção carnal em face de vítima vulnerável.”
O precedente destacava ainda “a gravidade da ação do recorrido que passou as mãos nos seios e no restante do corpo da filha enquanto ela dormia”. Note que o tribunal enfatizou especificamente o estado de sono como elemento caracterizador da gravidade e da vulnerabilidade.
A questão central: por que a desclassificação é impossível

Agora chegamos ao núcleo da questão que todo concurseiro precisa dominar completamente. A impossibilidade de desclassificação não é apenas jurisprudencial – é estrutural, está na própria arquitetura legal dos crimes.
Entendendo a hierarquia legal: crime principal vs crime subsidiário
A Lei 13.718/2018 criou a importunação sexual especificamente para preencher uma lacuna. Antes de 2018, casos de toques sem vulnerabilidade, violência ou grave ameaça ficavam sem tipificação adequada – eram contravenção ou arquivamento.
A nova lei estabeleceu: Art. 215-A: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.”
A expressão que muda tudo: “se o ato não constitui crime mais grave”
Essa expressão não é apenas técnica jurídica – é uma escolha estrutural do legislador. Ela estabelece que a importunação sexual é crime subsidiário, ou seja, só se aplica quando não há crime principal.
Exemplo prático: João toca o seio de Maria acordada no metrô. Maria está consciente, pode gritar, se afastar, chamar ajuda. Ela não consente, mas pode reagir. Resultado: Importunação sexual – 1 a 5 anos.
Contraste: João toca o seio de Maria dormindo no sofá. Maria está inconsciente, não pode perceber imediatamente, reagir ou se defender. Resultado: Estupro de vulnerável – 8 a 15 anos.
Se tentássemos aplicar importunação sexual no segundo caso, estaríamos violando a própria lei, que diz: aplique importunação “se o ato não constitui crime mais grave”. Como há vulnerabilidade, constitui crime mais grave.
A consolidação jurisprudencial: um edifício sólido de precedentes
A decisão do STJ no Informativo 859/2025 não surgiu do nada. Ela é a pedra de fechamento de um edifício jurisprudencial que vem sendo construído há anos.
O alicerce: Tema Repetitivo 1121
O Tema Repetitivo 1121, julgado pela Terceira Seção do STJ: “Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP).”
Embora trate especificamente de menores de 14 anos, o raciocínio jurídico é idêntico para todas as formas de vulnerabilidade: Vulnerabilidade + Ato libidinoso = Estupro de vulnerável. NÃO IMPORTA: Leveza da conduta, duração, superficialidade. NÃO É POSSÍVEL: Desclassificação para importunação.
As paredes: Súmula 593 STJ
A Súmula 593 do STJ, editada em 25/10/2017: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.”
Transpondo para casos de sono: São irrelevantes eventual “consentimento” posterior ao despertar, experiência sexual anterior da vítima, relacionamento amoroso atual ou pregresso, e por extensão lógica: momento do despertar, reação da vítima, duração do ato.
Questão de concurso comentada: aplicando a teoria na prática
(Magistratura - TJ - 2025 - Simulada)
Durante uma festa na casa de amigos, Pedro encontra sua ex-namorada Carla dormindo profundamente no quarto após ter bebido bastante. Aproveitando-se da situação, Pedro levanta a blusa de Carla e acaricia seus seios por aproximadamente cinco minutos, até que ela começa a acordar e o afasta, dizendo que não quer qualquer tipo de contato. Considerando a jurisprudência do STJ (Informativo 859/2025), assinale a alternativa CORRETA:
A) A conduta configura importunação sexual, pois foi ato ligeiro sem conjunção carnal e a vítima conseguiu afastá-lo.
B) A conduta configura estupro de vulnerável, sendo irrelevantes o relacionamento anterior, o despertar da vítima e a ausência de violência física.
C) Não há crime, pois o relacionamento anterior presume consentimento para atos de intimidade.
D) A conduta configura contravenção penal de perturbação do sossego.
Gabarito: B
Por que B é a única resposta possível: Carla estava dormindo profundamente (vulnerabilidade absoluta), Pedro tocou seus seios (ato libidinoso), conduta durou cinco minutos (tempo suficiente para caracterizar ato deliberado). Estado de sono = vulnerabilidade absoluta (STJ Informativo 859/2025). Fatores irrelevantes: relacionamento anterior (Súmula 593 STJ), despertar da vítima (STJ Informativo 859/2025), ausência de violência física (desnecessária quando há vulnerabilidade).
Estados de vulnerabilidade temporária: expandindo a proteção
A lógica estabelecida no STJ Informativo 859/2025 não se limita ao sono. O raciocínio jurídico se estende naturalmente a outras situações de vulnerabilidade temporária:
Outros estados cobertos pela mesma lógica
Embriaguez completa: Pessoa totalmente embriagada, incapaz de compreender a situação. Exemplo: Maria bebe excessivamente e fica inconsciente. Tipificação: Estupro de vulnerável.
Efeito de medicamentos: Pessoa sob efeito de remédios que causam sonolência, confusão mental. Exemplo: Ana toma medicação para dormir e fica em semiconsciência. Tipificação: Estupro de vulnerável.
Estado de choque psicológico: Vítima em choque após trauma, acidente, notícia impactante. Exemplo: Joana fica em choque após acidente e não consegue reagir. Tipificação: Estupro de vulnerável.
Desmaio ou mal-estar súbito: Pessoa desmaia por qualquer causa. Exemplo: Fernanda desmaia no transporte público. Tipificação: Estupro de vulnerável.
Todos esses casos se unificam sob um princípio comum: a incapacidade de oferecer resistência consciente e informada. Não importa a causa – sono, embriaguez, medicamentos, choque – o resultado é o mesmo: vulnerabilidade que demanda proteção penal integral.
Considerações finais: a evolução da proteção penal
A decisão do STJ no Informativo 859/2025 representa muito mais que uma simples orientação jurisprudencial. É o resultado de uma evolução civilizatória na compreensão de como o Direito Penal deve proteger a dignidade sexual das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Esta decisão fecha uma porta que jamais deveria ter sido aberta – a porta da relativização da vulnerabilidade. Sem ela, correríamos o risco de ver banalização de condutas gravemente lesivas, criação de “graus” de vulnerabilidade onde a lei estabelece absolutos, impunidade crescente através de desclassificações indevidas.
Para os concurseiros, dominar essa jurisprudência significa estar preparado para uma das questões mais atuais e tecnicamente sofisticadas do direito penal contemporâneo. O STJ Informativo 859/2025 representa o marco jurisprudencial definitivo sobre essa questão, consolidando que proteção integral da dignidade sexual é o caminho escolhido pelo sistema penal brasileiro.
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