Saiba como o esgoto clandestino pode ter contribuído para o surto de virose no Guarujá e os impactos na saúde pública da região.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu – Virose no Guarujá
A cidade do Guarujá, no litoral paulista, foi atingida por um surto de virose, com mais de 2.000 atendimentos por gastroenterocolite aguda (GECA) só em dezembro. E a causa parece ser a contaminação da praia por esgoto clandestino.
Inclusive a praia da Enseada, que é a mais extensa do Município de Guarujá, é uma das duas praias da cidade que está com a classificação de imprópria para banho pelo Boletim de Balneabilidade da Cetesb desde o dia 29 de dezembro.
Amostras da água foram enviadas ao Instituto Adolfo Lutz para análises que possam identificar a origem dos casos da gastroenterocolite aguda.
Principais sintomas
A doença, que provoca inflamação no estômago, intestino delgado e grosso, pode ser causada por bactérias, parasitas ou vírus, mas em 95% dos casos a origem é viral, e os principais sintomas são:
- Diarreia;
- Vômitos;
- Febre;
- Náuseas;
- Dores abdominais musculares e de cabeça.
Mesmo com o reforço na equipe médica e de enfermagem do Município e a extensão do horário de funcionamento das unidades de saúde, a alta procura dificulta o atendimento da população e dos turistas contaminados.
Farmácias da região confirmaram um aumento considerável na demanda por produtos como probióticos, remédios para enjoo e reidratantes orais, com risco de falta de produtos para venda.
Uma mulher de 29 anos, que havia voltado de Guarujá há dois dias, acabou morrendo após sintomas de virose. As autoridades estão investigando se a morte tem relação com a contaminação da praia.
A Secretaria Municipal de Saúde de Guarujá afirma que o aumento no número de casos de virose é comum no verão devido a fatores como altas temperaturas, alimentação inadequada, aglomeração de pessoas e maior exposição a alimentos contaminados.
Relatos semelhantes começaram a surgir também em Santos, Ubatuba e Praia Grande.
A Prefeitura de Guarujá desconfia que vazamentos e ligações clandestinas de esgoto na região possam estar relacionados ao aumento de casos de virose na cidade, e por isso notificou a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) para obter repostas.
A SABESP diz que está adotando medidas para verificar as solicitações da prefeitura e prestou os esclarecimentos necessários à Secretaria Municipal de Meio Ambiente, acrescentando, ainda, que monitora o sistema de esgoto da Baixada Santista e que “ele está operando normalmente”.
A Sabesp apontou que Guarujá tem aproximadamente 45 mil imóveis irregulares, cujo despejo de esgoto pode estar sendo realizado em galerias de águas pluviais, o que afetaria a balneabilidade das praias.
Em nota, a SABESP afirmou:
“Cabe destacar que as fortes chuvas podem sobrecarregar o sistema (de esgoto) devido à entrada irregular de água pluvial, já que o sistema não foi projetado para essa finalidade”
Por fim, a SABESP refutou qualquer relação do surto de virose com a operação da Companhia: “O surto de virose não tem relação com a operação da empresa“.
Análise Jurídica
Agora vamos analisar as repercussões jurídicas dessa possível contaminação das praias por esgoto clandestino.
A Lei federal nº 6.938/81 instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente, que pode ser conceituado como o conjunto de normas, princípios, diretrizes, instrumentos e objetivos voltados para a proteção do meio ambiente.
E em seu artigo 3º a LPNMA traz uma série de conceitos, dentre os quais se destacam:
Poluição: a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente, prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população, criem condições adversas às atividades sociais e econômicas, afetem desfavoravelmente a biota, afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente ou lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;
Poluidor: a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.
Portanto, o despejo de esgoto clandestino no mar e nas praias é uma forma severa de poluição, já que degrada a qualidade do meio ambiente (afeta a fauna e a flora marinha), e ainda por cima causa sérios riscos à saúde humana (como o surto de virose que estamos vendo).
Importante ressaltar que a responsabilidade ambiental possui fundamento no artigo 225, §3º da Constituição Federal:
CF/88 Art. 225... §3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”
Espécies de responsabilização ambiental
Portanto, o artigo 225, §3º, da Constituição Federal, impõe aos infratores três espécies distintas de responsabilidades pelo dano ambiental, quais sejam:
E essas instâncias de responsabilização são independentes uma das outras, ou seja, um mesmo fato pode atrair a tríplice responsabilização.
O lançamento de esgoto em praia consiste em infração administrativa ambiental, crime ambiental e ainda gera o dever de indenizar. Vamos analisar cada uma dessas hipóteses de responsabilização.
Esfera civil: a responsabilidade civil ambiental, ou seja, de reparar os danos causados ao meio ambiente, além de objetiva (independe de culpa ou dolo), é solidária e fundamentada na teoria do risco integral, que é uma teoria extremada do risco, onde o nexo de causalidade é fortalecido (ver informativo STJ nº 545).
Além do mais, a pretensão de reparação do dano ambiental é imprescritível, conforme jurisprudência pacificada dos tribunais superiores, em especial o tema 999 do Supremo Tribunal Federal.
TEMA 999 do STF: É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.
Lembrando que o poder público, quando se omite no dever de fiscalizar, responde de forma objetiva, solidária, mas com benefício de ordem (execução subsidiária), conforme súmula 652 do STJ.
Súmula 652 do STJ: “A responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária”
Esfera administrativa: a infração administrativa é a prevista no artigo 61, do Decreto federal nº 6.514/2008, com previsão de multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais), que será aplicada apenas depois da confecção de laudo técnico elaborado pelo órgão ambiental competente, identificando a dimensão do dano decorrente da infração e em conformidade com a gradação do impacto.
Esfera penal: o crime ambiental vislumbrado é o tipificado no artigo 54, da Lei nº 9.605/98 (Lei de crimes ambientais), qualificado pelo fato de dificultar ou impedir o uso público das praias e por decorrer de lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis, com pena de reclusão de 1 a 5 anos.
Lei nº 9.695/98 Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. ... § 2º Se o crime: ... IV - dificultar ou impedir o uso público das praias; V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena - reclusão, de um a cinco anos.
O STJ entende que o crime do art. 54, caput, da Lei n. 9.605/98, primeira parte, se trata de crime formal, de perigo abstrato, prescindindo de prova pericial para constatação de poluição que possa resultar em danos à saúde humana diante do desrespeito às regras de emissão constatado pelas instâncias ordinárias.
Crime formal (também chamado de crime de consumação antecipada ou de resultado cortado) é aquele em que o resultado naturalístico não é necessário para a consumação do delito, mesmo que a norma preveja o resultado.
Ou seja, no crime formal, a produção do resultado é indiferente para a consumação do crime.
No caso da poluição sonora, o STJ entendeu que basta que se comprove que foi emitido ruído acima do permitido pelo regulamento para que o crime seja considerado consumado, independente do efetivo prejuízo à saúde humana, comprovado por perícia técnica, que é totalmente dispensável.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado para enquadrar o despejo de esgoto como crime do artigo 54 da LCA.
Vejamos a ementa do julgado:
1. Conforme precedentes desta Corte, o delito do art. 54, caput, primeira parte, da Lei n. 9.605/98, é crime de perigo abstrato, prescindindo de prova pericial para constatação de poluição que possa resultar em danos à saúde humana. 1.1. No caso concreto, diante do comprovado desrespeito às regras de emissão sonora constatado pelas instâncias ordinárias em decorrência de levantamento de ruídos ambiental, indevida a desclassificação operada pelo Tribunal de Justiça com fundamento na falta de realização de prova técnica para comprovação do dano ou da probabilidade do dano à saúde dos moradores locais. (AgRg no REsp n. 2.130.764/MG, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 16/9/2024, DJe de 18/9/2024.)
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