“Racismo Reverso” existe? O que disse o STJ?

“Racismo Reverso” existe? O que disse o STJ?

Em uma decisão proferida no dia 04/02/2025, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para anular um processo por injúria racial movido contra um homem negro que teria ofendido um cidadão italiano.

O caso teve origem quando o acusado (homem negro), após não receber por serviços prestados, referiu-se ao italiano (homem branco) como “escravista cabeça branca europeia” através de um aplicativo de mensagens.

Em outras palavras, a tese a ser analisada era se existe uma espécie de “racismo reverso”, isto é, no caso de um homem branco (vítima) que acusava um negro (autor) de injúria racial em razão da cor de sua pele.

Perceba, pela lei brasileira, o crime de injúria racial é equiparado ao de racismo. Assim, caso a tese fosse acolhida, o homem negro autor da ofensa, poderia ser condenado por “injúria racial”.

Anteriormente, fizemos uma análise sobre o não conhecimento dessa tese pelo TJ-SP.

O que seria o “Racismo Reverso” e como entende a doutrina tradicional?

Como se sabe, o racismo é um fenômeno estrutural, que envolve a discriminação e exclusão sistemática de grupos vulneráveis, como negros, indígenas e outras minorias raciais.

Nesse sentido, a ideia mais tradicional é que a raça branca, que historicamente esteve em uma posição de privilégio, não pode ser vítima de racismo da mesma maneira que grupos marginalizados.

Em outra palavras, o entendimento consolidado na atualidade é o de que a discriminação contra pessoas brancas não se configura como racismo nos termos da Lei nº 7.716/89.

Entretanto, ainda há parte da doutrina e na jurisprudência, que se contesta a noção de “racismo reverso”.

Inclusive, já houve quem ingressou com ação de danos morais:

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. (...) Publicação jornalística. Referência, no título, da turma do não ao racismo reverso (leia-se: Bolsonaristas e fãs do Véio da Havan). (...) Matéria que não cuida dessa questão, limitando-se aos apontamentos sobre o racismo e da defesa de que é inexistente o denominado racismo reverso. Danos morais, quanto às pessoas jurídicas, dependente de prejuízo ou abalo à imagem comercial. (...). Precedentes. APELO DOS RÉUS PROVIDO, PREJUDICADO O RECURSO DOS AUTORES. (TJSP; AC 1006341-52.2020.8.26.0704; Ac. 17940835; São Paulo; Terceira Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Donegá Morandini; Julg. 28/05/2024; DJESP 06/06/2024; Pág. 1356)

O TJ-RJ também já enfrentou a matéria:

(...) Não há, pois, qualificação posterior sobre quem tem capacidade para praticar ou sofrer, de modo que se afasta, num exercício de lógica, a ideia do racismo reverso. Se qualquer pessoa pode praticar racismo, admite-se que um negro seja o autor do crime? sim. (disponível em: Https://www. Conjur. Com. BR/2017-AGO-31/opiniao-nao-existe-monopolio-crime-racismo). Desta feita, de uma leitura atenta e minuciosa, do conteúdo de todos os elementos de prova trazidos aos autos, e feitas as devidas confrontações entre os mesmos, chega-se à conclusão de que não merecem prosperar as teses absolutórias, uma vez que, ao contrário do que sustenta a defesa técnica, a tipicidade, a autoria e a materialidade delitivas resultaram sobejamente demonstradas, com esteio no sólido e coeso conjunto probatório, amealhado ao longo de toda a instrução criminal, donde exsurge a ocorrência dos fatos, nos exatos e precisos termos da denúncia, não pairando dúvidas acerca da procedência da pretensão acusatória. Passa-se ao exame da dosimetria das penas, merecendo acolhimento a pretensão recursal defensiva de redução do valor unitário fixado na pena de multa aplicada. (...)

(TJRJ; APL 0007587-59.2021.8.19.0058; Saquarema; Oitava Câmara Criminal; Relª Desª Elizabete Alves de Aguiar; DORJ 11/08/2023; Pág. 242)

Na doutrina, autores como Adilson Moreira sustentam que o racismo é um fenômeno estrutural, que envolve a discriminação e exclusão sistemática de grupos vulneráveis, como negros, indígenas e outras minorias raciais. Nesse sentido, a raça branca, que historicamente esteve em uma posição de privilégio, não pode ser vítima de racismo da mesma maneira que grupos marginalizados.

Racismo reverso

Em resumo, o entendimento consolidado é o de que a discriminação contra pessoas brancas, diante da ausência desse histórico de discriminação, não se configura como racismo nos termos da Lei nº 7.716/1989.

Um dos principais argumentos é que o racismo implica uma relação de poder e dominação, que não se verifica em situações em que indivíduos brancos alegam discriminação.

Logo, a raça branca, por não ter sido historicamente oprimida, não poderia ser alvo de racismo nos moldes previstos pela legislação.

Análise jurídica do STJ

Em síntese, o colegiado, sob relatoria do Ministro Og Fernandes, afastou a possibilidade do chamado "racismo reverso", determinando que a injúria racial não se configura em ofensas dirigidas a pessoas brancas exclusivamente por sua condição racial.

Perceba, o STJ trouxe uma discussão sobre a natureza do crime de injúria racial. Nessa linha, a linha de argumentação se pautou por três fundamentos.

Fundamento 1

De início, o STJ pautou-se pela própria interpretação do artigo 2º-A da Lei 7.716/1989:

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Nessa linha, o voto do Ministro Og Fernandes destacou que este dispositivo legal foi especificamente concebido para proteger grupos minoritários historicamente discriminados.

Logo, ele destacou que essa interpretação não é meramente literal, mas deve considerar o contexto histórico e social em que a lei foi criada, bem como sua finalidade precípua: proteger grupos minoritários.

Fundamento 2

Em seguida, trouxe a aplicação do “Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”:

Em outras palavras, o documento do CNJ, através de um estudo reconhece o racismo como um fenômeno estrutural, baseado em uma hierarquia racial historicamente imposta por grupos dominantes.

Logo, o ministro enfatizou que a injúria racial só se configura quando existe uma relação de opressão histórica - elemento ausente no caso em questão.

Fundamento 3

Por fim, a decisão levou em conta na interpretação do conceito de “grupos minoritários“, previsto no artigo 20-C da mesma lei:

Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.      (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Assim, o ministro esclareceu que esta expressão não se refere ao contingente populacional “raça branca”, mas sim à representatividade nos espaços de poder e ao acesso ao exercício pleno da cidadania.

Então, quer dizer, que um negro chama um branco de “escravista cabeça branca europeia” e não se configura crime nenhum?

Não é isso. Isto porque, a decisão não significa uma permissão para ofensas raciais contra pessoas brancas. O ministro fez questão de destacar que tais condutas podem configurar outros crimes contra a honra, como a injúria simples.

Para entendermos melhor, vejamos as diferenças:

Injúria racial (Lei 7.716/89):

  • Pena de 2 a 5 anos de reclusão e multa
  • Crime inafiançável e imprescritível
  • Exige o elemento discriminatório racial histórico
  • Protege grupos historicamente discriminados

Injúria simples (Art. 140 do CP):

  • Pena de 1 a 6 meses de detenção ou multa
  • Crime prescritível e afiançável
  • Pune ofensas à dignidade ou decoro de qualquer pessoa
  • Não exige contexto histórico de discriminação
O próprio Ministro Og Fernandes fez questão de ressaltar em seu voto que "é perfeitamente possível haver ofensas de negros contra brancos", mas estas devem ser processadas sob "adequada tipificação".

Portanto, no caso concreto, no caso concreto, após o afastamento da injúria racial pelo STJ, caberia ao cidadão italiano, se assim desejasse, apresentar queixa-crime por injúria simples, desde que dentro do prazo decadencial de 6 meses. Isto porque, a injúria simples é um crime de ação penal privada, conforme estabelece o artigo 145 do Código Penal.

Resposta à decisão do STJ

Em resposta a essa decisão, o deputado estadual Guto Zacarias (União Brasil-SP) apresentou um projeto de lei na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo visando assegurar que todos os cidadãos, incluindo os brancos, tenham proteção pela legislação antirracismo no estado. 

O projeto propõe a implementação de medidas de prevenção, conscientização e acolhimento de vítimas em situação de racismo por estabelecimentos comerciais de grande circulação de pessoas.

O grande debate é se é possível uma lei estadual criar uma hipótese de “racismo reverso”, o que, em tese, seria de competência da União. Logo, é possível que caso a lei passe, seja inconstitucional.

Como o tema já caiu em provas?

(DPE/RJ, Defensor Público, FGV, 2023)

No dia 8 de janeiro de 2023, Alecrim Dourado de Moreira Bragança foi a um salão de beleza fazer manicure, dizendo que precisava se preparar para um grande evento. Foi atendido por Neide, mulher negra, que começou a trabalhar naquele estabelecimento na mesma semana, Alecrim Dourado de Moreira Bragança solicitou à gerente do salão de beleza que não fosse atendido pela nova funcionária. Ao ser questionado dos motivos, disse em alto tom, encarando Neide, que tinha nojo de pessoas que pareciam macacas. Neide ao ouvir a fala do Sr. Alecrim Dourado de Moreira Bragança, deu voz de prisão em flagrante por racismo e chamou a polícia. Alecrim Dourado de Moreira Bragança foi preso e conduzido à presença da autoridade policial. Diante dessa situação problema, a autoridade policial deve autuar o flagrante e proceder nos seguintes termos:

Gabarito: b) Alecrim Dourado de Moreira Braganca será autuado pelo crime de injuria racial, capitulado no Art. 140, §3º, do Código Penal, por injuriar alguém utilizando elementos referentes a raça, cor ou etnia; a autoridade policial plantonista fixará fiança concedendo liberdade provisória ao flagranteado.

Quer saber quais serão os próximos concursos?

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