Enfermeira consegue acréscimo salarial por exercer funções médicas além de suas atribuições. Decisão reconhece acúmulo de função e direitos trabalhistas.
Um caso recentemente decidido pelo TRT 4 chamou a atenção do ambiente jurídico: uma enfermeira que exercia atividade “própria” de médico deve receber acréscimo por acumular a função de médico.
Mas, quais foram de fato as peculiaridades do caso em concreto? O que, de fato, exercia a enfermeira que não era de sua atribuição?
Veja, a 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4, Rio Grande do Sul) confirmou sentença que determinou o pagamento de plus salarial a uma enfermeira do Hospital Nossa Senhora Aparecida de Camaquã que realizava regularmente o procedimento de passagem de pressão arterial média (PAM) nos pacientes da Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Na linha do pensamento do TRT-4, este procedimento é de competência exclusiva de médico ou enfermeiro com capacitação específica, que a trabalhadora não detinha.
Quais foram os fundamentos da decisão? Aprofundando o teor do processo ATOrd 0020555-98.2022.5.04.0141 – equiparação salarial
Como se sabe, o artigo 456, parágrafo único, da CLT estabelece uma regra fundamental para a compreensão das obrigações do empregado no contrato de trabalho.
Isto porque, ao determinar que, na ausência de prova ou cláusula expressa, entende-se que o trabalhador aceita realizar qualquer serviço compatível com sua condição pessoal, o legislador buscou conferir certa flexibilidade à relação empregatícia:
Art. 456. A prova do contrato individual do trabalho será feita pelas anotações constantes da carteira profissional ou por instrumento escrito e suprida por todos os meios permitidos em direito. (Vide Decreto-Lei nº 926, de 1969) Parágrafo único. A falta de prova ou inexistindo cláusula expressa e tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal.
Entretanto, esta flexibilidade, contudo, não pode ser interpretada como um cheque em branco ao empregador.
Perceba, a expressão “compatível com sua condição pessoal“, presente no dispositivo, deve ser compreendida à luz de todo o sistema jurídico trabalhista, como entendeu o TRT4.
Diante desse contexto, a condição pessoal do empregado engloba não apenas suas capacidades físicas e intelectuais, mas também sua formação profissional, suas certificações técnicas e sua experiência.
No caso específico dos profissionais de saúde, esta compatibilidade está intrinsecamente ligada às habilitações e autorizações concedidas pelos respectivos conselhos profissionais.
Por exemplo, não é possível que um veterinário faça uma intervenção de coração em seres humanos, pois não possui habilidade intelectual, apesar de ter capacidade física.
Em outras palavras, só é possível desenvolvar algo compatível com sua “função”, como restou decidido pelo TRT.
“função é o conjunto sistemático de atividades, atribuições e poderes laborativos, integrados entre si, formando um todo unitário no contexto da divisão do trabalho estruturada no estabelecimento ou na empresa. A tarefa consiste em uma atividade laborativa específica, estrita e delimitada, existente na divisão do trabalho estruturada no estabelecimento ou na empresa. É uma atribuição ou ato singular no contexto da prestação laboral. A reunião coordenada e integrada de um conjunto de tarefas dá origem a uma função” (in Curso de Direito do Trabalho, Delgado, Maurício Godinho, 3ª ed. 2ª tiragem, LTr ed., 2004, pág. 1009).”
No caso concreto, a enfermeira desempenhava uma “função” que não era própria de sua especialização, e sim de enfermeiros especialistas, bem como de médicos, fazendo a “intubação” de pacientes.
Diferenças salariais decorrentes de acúmulo de função
Ora, as diferenças salariais decorrentes de acúmulo de função só são cabíveis em se tratando de novação objetiva do contrato, quando o empregado passa a desempenhar juntamente à função original, outra totalmente diversa.
Assim, o que entendeu o TRT4 foi que interpretando o art. 456 da CLT, em seu parágrafo único, o acúmulo de função que pode, em tese, ensejar o acréscimo postulado é aquele de maior complexidade e/ou responsabilidade, o que foi no caso concreto.
Como destacou o Relator:
“Tenho que as atividades descritas na prova oral produzida configuram acúmulo de funções, já que afirmado pela preposta da ré e pelas testemunhas ouvidas a convite da autora, que a reclamante, quando trabalhou na UTI, fazia a passagem de PAM (pressão arterial média), atividade esta que deveria ser feita por médico ou por enfermeiro capacitado, sendo que a reclamante não tinha autorização para fazer tal procedimento.”
Face ao exposto, restou comprovado que o acúmulo de função exigiu da reclamante (enfermeira) maior qualificação, complexidade e/ou responsabilidade.
Logo, o TRT entendeu que as tarefas atribuídas não estão contidas nos limites do “jus variandi” do empregador, por isso seria devido as diferenças deferidas em sentença, equiparando a acréscimo salarial por desempenhar papel que não seria seu.
Como último argumento, vale salientar que o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, previsto no artigo 884 do Código Civil pode também ser aplicável ao Direito do Trabalho por força do artigo 8º da CLT, e é também um limitador dessa interpretação extensiva do artigo 456.
Isto é, quando o empregador exige do trabalhador atividades que extrapolam sua qualificação original, beneficiando-se de uma expertise técnica especial sem a devida contrapartida salarial, resta configurada uma situação de desequilíbrio contratual que o ordenamento jurídico não pode chancelar.
Inclusive, essa linha de raciocínio se fortalece quando analisamos o artigo 461 da CLT:
Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
Em outras palavras: (embora este dispositivo trate especificamente da equiparação salarial, seu conteúdo axiológico permanece) a ideia de que trabalho de igual valor merece igual remuneração – transcende a mera equiparação entre empregados.
Assim, há necessidade de correspondência entre a complexidade e responsabilidade do trabalho e sua respectiva remuneração.
No caso específico da enfermeira que realizava procedimentos de PAM sem a devida capacitação, observa-se que houve uma clara extrapolação dos limites do artigo 456 da CLT.
Isto porque, repita-se, a “condição pessoal” da trabalhadora, definida por sua formação como enfermeira generalista, não abrangia a expertise técnica necessária para a realização de procedimentos específicos que exigem capacitação adicional.
No fundo, ao realizar tais procedimentos, a profissional assumia responsabilidades e riscos não contemplados em sua contratação original, configurando uma alteração substancial do contrato de trabalho que demanda o reconhecimento do acúmulo de função e a correspondente compensação salarial.
acúmulo de função
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