* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
O TRT-15 condenou um empregador ao pagamento de R$100 mil em danos morais e coletivos e reconheceu vínculo empregatício de trabalhador mantido por anos em condições análogas às de escravo. O que chamou a atenção foi o fato de que o lavrador era obrigado a morar em um galinheiro.
O trabalhador rural laborou no sítio por 8 anos, tanto na lavoura quanto em trabalhos domésticos. E, durante todo esse período, ele não recebia salário, trabalhando em troca de comida e moradia.
O local onde o lavrador morava era um paiol que servia de galinheiro, e abrigava equipamentos, embalagens de agrotóxicos e outros produtos químicos, tambores com resina, produtos agrícolas, além das galinhas do sítio. Além disso, o local estava sempre infestado de fezes de animais.
Como se não bastasse, o trabalhador escravizado dormia em um colchão empoeirado, velho, sem roupa de cama, em contato direto com o chão frio. Banheiro, nem pensar!
Apurou-se, também, que o trabalhador portava uma cicatriz no braço, decorrente de uma briga de facão que havia travado com o próprio empregador.
Após a colocação do trabalhador em um local seguro, a fiscalização trabalhista se reuniu com o empregador, a fim de tentar uma solução administrativa, com a regularização da situação (assinatura da carteira de trabalho) e o pagamento das verbas devidas, através da assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC.
O empregador se recusou a assinar o TAC, sob o fundamento de que não tinha condições financeiras de regularizar a situação, o que obrigou o Ministério Público do Trabalho a ajuizar uma ação civil pública.
O proprietário do sítio negou as acusações, ressaltando que:
“Os fatos tratados na presente demanda jamais ocorreram, não existindo trabalho análogo ao de escravo ou qualquer violação à ordem jurídica nacional ou internacional, pois as notícias/denúncias levadas aos agentes policiais, aos agentes do ministério do trabalho e ao Ministério Público do Trabalho, são absolutamente falsas e motivadas por sentimentos mesquinhos de pessoas que se portam com o objetivo de causar-lhe prejuízo”.
Não satisfeito, o empregador ainda tentou passar-se por vítima, já que:
“Suas condições de vida são absolutamente precárias, sendo pessoa simples e de pouca instrução, estando em pé de igualdade com a suposta vítima, jamais tendo se aproveitado de suas condições, não havendo sequer relação de emprego, pois apenas se prestou a ajudá-lo e acabou sendo apunhalado pelas costas com tantas acusações falsas, o que levou ao engano as autoridades competentes”.
Análise jurídica
Claramente a situação na qual se encontrava o pobre trabalhador rural pode ser enquadrada como análoga à escravidão, ou trabalho escravo contemporâneo.
Mas antes, vamos analisar os principais pontos desse processo.
Legitimidade ativa do Ministério Público do Trabalho
O artigo 127, da CF, confere ao Ministério Público a competência para defender interesses individuais indisponíveis.
CF/88 Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
E a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é firme no sentido de reconhecer que o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para ajuizar ação civil pública para tutelar interesses difusos, direitos coletivos e individuais homogêneos, desde que demonstrada relevância social da defesa de direitos assegurados constitucionalmente, o que se verificou no caso.
Conferir (ED-AIRR-213-47.2019.5.08.0016, 7ª Turma, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 14/06/2024).
Prescrição
Não há que se falar em prescrição, haja vista que a exploração da escravidão contemporânea ofende gravemente o núcleo duro dos direitos humanos que o Estado Brasileiro se comprometeu a respeitar perante a comunidade internacional, motivo pelo qual, consoante entendimento já consolidado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras vitimados/sobreviventes são indisponíveis.
Reconhecimento do trabalho escravo
O código penal tipifica como crime de “Redução a condição análoga à de escravo” o fato de “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. A pena-base é de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Portanto, os elementos que caracterizam o crime de escravidão moderna são:
- Submissão a trabalhos forçados;
- Submissão a jornadas exaustivas;
- Sujeição a condições degradantes de trabalho; e
- Restrição de locomoção do trabalhador.
Assim, não é necessária a cumulação de todos os quatro requisitos acima. Basta um deles para a configuração do trabalho escravo.
Há, ainda, a Instrução Normativa 2 do Ministério do Trabalho e Previdência, que dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela Auditoria-Fiscal do Trabalho nas situações elencadas, em especial os artigos 23 e 24:
Art. 23. Considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a: I - trabalho forçado; II - jornada exaustiva; III - condição degradante de trabalho; IV - restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; ou V - retenção no local de trabalho em razão de: a) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; b) manutenção de vigilância ostensiva; ou c) apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Art. 24. Para os fins previstos no presente Capítulo: I - trabalho forçado é aquele exigido sob ameaça de sanção física ou psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou no qual não deseje permanecer espontaneamente; II - jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de natureza física ou mental que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados à segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social; III - condição degradante de trabalho é qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho; IV - restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida é a limitação ao direito fundamental de ir e vir ou de encerrar a prestação do trabalho, em razão de débito imputado pelo empregador ou preposto ou da indução ao endividamento com terceiros; V - cerceamento do uso de qualquer meio de transporte é toda forma de limitação ao uso de meio de transporte existente, particular ou público, possível de ser utilizado pelo trabalhador para deixar local de trabalho ou de alojamento; VI - vigilância ostensiva no local de trabalho é qualquer forma de controle ou fiscalização, direta ou indireta, por parte do empregador ou preposto, sobre a pessoa do trabalhador que o impeça de deixar local de trabalho ou alojamento; e VII - apoderamento de documentos ou objetos pessoais é qualquer forma de posse ilícita do empregador ou preposto sobre documentos ou objetos pessoais do trabalhador.
Arcabouço normativo internacional
No âmbito internacional, podemos citar algumas normas aplicáveis ao combate a escravidão contemporânea.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, sendo fonte dos sistemas de direitos humanos e o principal regramento de universalização da proteção do ser humano, dispõe, em seus artigos IV e XXIII, que:
Artigo 4 Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo 23
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
A Convenção nº 105, da OIT, ratificada pelo Brasil, e promulgada pelo Decreto nº 58.822, de 14/07/1966, obrigam os países signatários a suprimir o trabalho forçado.
E com a assinatura da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) também foi reforçado o compromisso brasileiro de que “Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas”.
Por fim, o Brasil tem, desde 1995, o compromisso com a erradicação do trabalho escravo, tratando-se de uma política de Estado, e não de governo.
PEC do Trabalho Escravo
Em 2014, tivemos a promulgação da Emenda Constitucional nº 81, conhecida como PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco de propriedades rurais e urbanas que possuem trabalhadores submetidos à escravidão.
CF/88 Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
Conclusão
Infelizmente, ainda é comum encontrar trabalhadores submetidos a condição análoga à escravidão, também conhecida como escravidão contemporânea.
Estima-se que, de 1995 a 2023, foram encontrados 63.516 trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Por isso é imprescindível que o Estado brasileiro continue aplicando recursos e esforços no combate a essa praga social que ainda nos aflige, e acaba por ferir de morte a dignidade desses trabalhadores.
Tema relevante para provas de direito do trabalho, processo do trabalho, direito constitucional e direitos humanos.
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