DPU aprova cotas para trans em novos concursos públicos
Introdução
A discussão sobre a aplicação de políticas afirmativas a determinados grupos da sociedade é bastante polêmica e tais medidas nem sempre são bem recebidas pelo público em geral.
Recentemente publicada, a Resolução CSDPU Nº 222, de 1º de agosto de 2024 (normativa interna aprovada pelo Conselho Superior da instituição), introduz a denominada “cota para pessoa trans” em todos os concursos da Defensoria Pública da União, compreendendo tanto a realização de certames para servidores, quanto concursos para membros da carreira (defensores públicos federais).
Tal normativa representa um marco significativo na promoção da igualdade e inclusão de pessoas trans e travestis no serviço público brasileiro, em especial na Defensoria Pública da União (DPU).
Assim, este artigo pretende analisar os fundamentos jurídicos e sociais dessa Resolução, com foco em normas de direitos humanos, jurisprudência, doutrinas e casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além da legislação nacional aplicável.
Contexto Legal e Normativo
A Resolução está alicerçada em diversos instrumentos internacionais e nacionais que visam a promover a igualdade e a combater a discriminação. Entre os principais documentos internacionais temos:
- Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – Garante que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
- Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) – Estabelece a igualdade perante a lei e a proteção contra discriminação.
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) – Assegura a igualdade e proteção da lei sem discriminação.
Esses documentos formam a base normativa que justifica a implementação de ações afirmativas, como as previstas na Resolução CSDPU Nº 222.
Jurisprudência relativa ao assunto
A Resolução também se apoia em decisões significativas do Supremo Tribunal Federal (STF):
- Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 – Relatada pelo ministro Celso de Mello, esta decisão enquadrou a homofobia e transfobia como crimes de racismo, reconhecendo a vulnerabilidade das pessoas trans.
- Mandado de Injunção (MI) 4733 – Relatado pelo ministro Edson Fachin, reforçou a criminalização da homofobia e transfobia, destacando a necessidade de medidas protetivas para grupos vulneráveis.
- Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 – Validou a Lei 12.990/2014, que reserva vagas em concursos públicos para candidatos negros, estabelecendo um precedente importante para outras ações afirmativas.
Doutrina
A doutrina de direitos humanos e igualdade substancial oferece uma base teórica robusta para a adoção de ações afirmativas. Juristas como José Afonso da Silva defendem que a igualdade substancial busca tratar desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades para promover a verdadeira igualdade de oportunidades. Isso significa que, para alcançar a igualdade real, é necessário adotar medidas específicas que compensem as desvantagens históricas e estruturais enfrentadas por grupos marginalizados.
Casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem proferido decisões importantes que reforçam a proteção dos direitos das pessoas LGBTQIA+:
- Caso Atala Riffo e Filhas vs. Chile – A Corte destacou que a orientação sexual e a identidade de gênero são categorias protegidas contra discriminação.
- Caso Azul Rojas Marín y otra vs. Peru – Reforçou a proteção contra discriminação e violência baseada na identidade de gênero, reconhecendo a necessidade de medidas específicas para proteger os direitos das pessoas trans.
Legislação Brasileira
A Resolução CSDPU Nº 222 está alinhada com várias leis brasileiras que promovem a igualdade e proteção dos direitos das pessoas trans. As normativas vão desde a própria lei orgânica da instituição, até normativas que garantem a necessidade de estabelecimento de políticas afirmativas a favor de determinados grupos vulnerabilizados.
- Lei Complementar nº 80/94 – o artigo 4º da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública traz como função institucional a promoção, difusão e conscientização dos direitos humanos, além da mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados (incisos III e VIII).
- Lei nº 14.382/22 – Permite a alteração de nome e gênero no registro civil sem necessidade de decisão judicial, reconhecendo o direito à identidade de gênero autodeclarada.
- Lei 12.990/2014 – Estabelece a reserva de vagas em concursos públicos para candidatos negros, servindo como precedente para outras ações afirmativas.
Impacto e Implementação da Resolução
A Resolução CSDPU Nº 222 assegura a reserva de 2% das vagas em concursos públicos da DPU para pessoas trans e travestis. Esse percentual, embora modesto, representa um passo importante na promoção da igualdade de oportunidades e no combate à discriminação.
- Mecanismos de Implementação:
- Autodeclaração: As pessoas trans podem se autodeclarar no momento da inscrição no concurso, iniciando o processo de elegibilidade para a vaga reservada.
- Entrevista com Comissão Especial: A autodeclaração será verificada por uma comissão especial, que considerará a vivência e os desafios enfrentados pela pessoa trans.
- Concorrência Concomitante: As pessoas trans podem concorrer simultaneamente às vagas reservadas e às vagas de ampla concorrência.
- Autodeclaração: As pessoas trans podem se autodeclarar no momento da inscrição no concurso, iniciando o processo de elegibilidade para a vaga reservada.
- Garantias de Defesa e Transparência:
- Procedimento Apuratório: Em caso de suspeita de falsidade na autodeclaração, será instaurado um procedimento apuratório, garantindo o contraditório e a ampla defesa.
- Avaliação da Eficácia: A Secretaria de Gestão de Pessoas manterá um cadastro para avaliar a eficácia da ação afirmativa ao longo do tempo.
- Procedimento Apuratório: Em caso de suspeita de falsidade na autodeclaração, será instaurado um procedimento apuratório, garantindo o contraditório e a ampla defesa.
- Reavaliação após Dez Anos: O sistema de reserva de vagas será reavaliado após dez anos, com participação da sociedade civil e defensores públicos, permitindo uma ampla discussão sobre sua continuidade ou aperfeiçoamento.
Conclusão
Agora, façamos algumas considerações finais sobre a DPU e a aprovação de cotas para trans.
A Resolução CSDPU Nº 222 é um avanço significativo na luta pela igualdade e inclusão de pessoas trans no Brasil.
Ao assegurar a reserva de vagas para pessoas trans nos concursos públicos da DPU, a resolução promove a igualdade de oportunidades e combate à discriminação e a exclusão dessas pessoas na sociedade.
Fundamentada em normas de direitos humanos, jurisprudência e doutrinas relevantes, essa medida representa um passo importante na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
A implementação efetiva dessa resolução exigirá monitoramento contínuo e ajustes conforme necessário, para garantir que ela realmente promova a inclusão e proteja os direitos das pessoas trans.
A experiência e os dados coletados ao longo dos dez anos iniciais serão cruciais para avaliar o impacto da medida e decidir sobre sua continuidade ou adaptação.
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