Direito Fundamental à Internet: a questão dos indígenas
Palmas (TO) – Indígenas brasileiros fazem cursos de informática na “Oca Digital” durante os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas.( Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Direito Fundamental à Internet: a questão dos indígenas

Olá, pessoal. Hoje veremos acerca do tema direito fundamental à internet e as implicações práticas da efetivação desse direito nas comunidades indígenas.

* Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.

Direito Fundamental à Internet

1. Direito Fundamental à Internet: questionamento inicial

    Existe algum dispositivo em nosso ordenamento jurídico que trabalha um direito fundamental à internet? A resposta é sim. Desde já, importante deixar claro que existe normativa que aborda expressamente o direito à internet na ordem constitucional brasileira, considerando que esta não se restringe ao texto constitucional de 1988.

    Starlink em Tribos Indígenas:

    A parceria do Governo Federal com a empresa Starlink almejava, dentre outras medidas, conectar 19 mil escolas da região; monitorar o desmatamento no Amazonas; e possibilitar auxílio emergencial mais rápido, o que antes demorava dias.

    Tribos indígenas receberam a internet da Starlink. Porém, há relatos de vícios dos mais novos à rede[1]; divisão de tribos indígenas[2]; prejuízos em tarefas do cotidiano e até mesmo vício em pornografias[3].

    2. Direito Fundamental à Internet: Bloco de Constitucionalidade

    Bloco de Constitucionalidade: De fato, existe um direito fundamental à internet previsto em nosso ordenamento. A ideia de bloco de constitucionalidade, no Brasil, conforme a melhor doutrina, abrange os tratados de Direitos Humanos aprovados formalmente, na forma do art. 5º, §3º, CF[4].

    Constituição Federal – Art. 5º, §3º: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

    Assim, a Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência e seu protocolo facultativo, aprovados em Nova Iorque, foram incorporados no nosso ordenamento jurídico com os requisitos do art. 5º, §3º, CF, passando a integrar o denominado bloco de constitucionalidade.

    Essa convenção, aprovada pelo Decreto n. 6949/09, previu, expressamente, no art. 21, ‘c’, o acesso à internet, como parte do direito fundamental à informação, meio que deve ser incentivado, conforme o art. 21, “d” da Convenção.

    Decreto nº 6949/2009 – Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.
    Artigo 21- Liberdade de expressão e de opinião e acesso à informação – Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar que as pessoas com deficiência possam exercer seu direito à liberdade de expressão e opinião, (…)  c) Urgir as entidades privadas que oferecem serviços ao público em geral, inclusive por meio da Internet, a fornecer informações e serviços em formatos acessíveis, que possam ser usados por pessoas com deficiência; d) Incentivar a mídia, inclusive os provedores de informação pela Internet, a tornar seus serviços acessíveis a pessoas com deficiência.

    Assim, busca-se concretizar o direito à informação previsto no art. 226, CF. A previsão em tal convenção integra e prevê expressamente o direito à internet, sendo certo que tal tipo de comunicação deve ser entendido como direito fundamental, conforme o art. 5º, §2º, CF”.

    3. Direito Fundamental à Internet: Cuidados com o tema

    De fato, a concretização do direito fundamental à internet pode trazer melhorias para a população indígena, tal como utilização da telemedicina, educação a distância, comércio, lazer, fiscalização e proteção contra violações de direitos humanos, programas de formação profissional e até mesmo denúncias de tentativas de destruição da natureza[5]. Porém, quando se trata de internet para a população indígena, importante analisarmos a situação “cum grano salis”.

    A Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, que trouxe um novo paradigma na proteção da população indígena, deixou de lado a ideia integracionista e passou a respeitar a autodeterminação, a identidade e a participação. Na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que trata de uma soft-law no âmbito da ONU, temos a ideia do direito à identidade, autodeterminação e proteção de direitos fundamentais. Sublinhe-se:

    Artigo 1
    Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos.
    Artigo 2
    Os povos e pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e indivíduos e têm o direito de não serem submetidos a nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que esteja fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena.
    Artigo 3
    Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
    Artigo 4
    Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.
    Artigo 5
    Os povos indígenas têm o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, mantendo ao mesmo tempo seu direito de participar plenamente, caso o desejem, da vida política, econômica, social e cultural do Estado.

    3.1. Sistema Interamericano

    No âmbito do Sistema Interamericano[6], temos ainda a Declaração Americana sobre o Direito dos Povos Indígenas de 2016. Essa declaração possui importante avanço, em sintonia com o Constitucionalismo Latino-Americano, reconhecendo o caráter pluricultural. Destaca-se:

    Artigo I
    1.
    A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas aplica-se aos povos indígenas das Américas. 2. A autoidentificação como povo indígena será um critério fundamental para determinar a quem se aplica a presente Declaração. Os Estados respeitarão o direito a essa autoidentificação como indígena, de forma individual ou coletiva, conforme as práticas e instituições próprias de cada povo indígena.
    Artigo II
    Os Estados reconhecem e respeitam o caráter pluricultural e multilíngue dos povos indígenas que fazem parte integrante de suas sociedades.
    Artigo X
    Os povos indígenas têm o direito de manter, expressar e desenvolver livremente sua identidade cultural em todos os seus aspectos, livre de toda intenção externa de assimilação.

    3.2. Estatuto do Índio

    No Brasil, temos o denominado Estatuto do Índio (Lei 6.001/73). Nesse ponto, a nomenclatura merece críticas, pois a singularidade “Índio” em sua nomenclatura é incompatível com a contemporânea ideia de coletividade dos povos indígenas. Ademais, o referido estatuto demonstra dispositivos racistas e integracionistas, motivo pelo qual consideramos tais dispositivos do Estatuto não recepcionados pela Constituição Federal de 1988.

    3.3. Constituição Federal de 1988

    Por seu turno, a Constituição Federal de 1988, logo em seus primeiros dispositivos, demonstram a ideia de pluralismo (art. 1º, V), de autodeterminação dos povos (art. 4º, III), bem como a o objetivo de que seja promovido o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).

    Conclusão

    Conclui-se que, de fato, a população indígena deve ter preservada a sua autodeterminação, cultura e organização social própria.

    Medidas para melhorias e garantia de direitos fundamentais devem ser adotadas, sendo certo que algumas políticas devem ser realizadas com a participação efetiva dos grupos afetados, estudos prévios, análises técnicas e extremo cuidado, evitando-se concretizar políticas públicas que afetem negativamente costumes, crenças e tradições, especialmente em relação ao direito fundamental à internet.

    REFERÊNCIAS:

    [1] Disponível em https://olhardigital.com.br/2024/06/06/internet-e-redes-sociais/indigenas-na-amazonia-recebem-internet-da-starlink/. Acesso em 08 de junho de 2024.

    [2] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/06/starlink-de-elon-musk-leva-internet-a-aldeia-isolada-na-amazonia-e-a-divide-por-dentro.shtml. Acesso em 08 de junho de 2024.

    [3] Disponível em https://emoff.correiobraziliense.com.br/curiosidades/indigenas-ganham-internet-se-viciam-em-pornografia-e-deixam-de-cacar/. Acesso em 08 de junho de 2024.

    [4] Vejamos os documentos importantes acerca dos tratados incorporados na forma do art. 5º, §3º, CF:

    a) Decreto Legislativo nº 186, de 9.7.2008 (direito fundamental à internet)

    Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007;

    b) Decreto nº 6.949, de 25.8.2009 (direito fundamental à internet)

    Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007;

    c) Decreto Legislativo nº 261, de 25.11.2015 (direito fundamental à internet)

    Aprova o texto do Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, concluído no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), celebrado em Marraqueche, em 28 de junho de 2013;

    d) Decreto nº 9.522, de 8.10.2018 (direito fundamental à internet)

    Promulga o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, firmado em Marraqueche, em 27 de junho de 2013;

    e) Decreto Legislativo nº 1, de 18.2.2021 (direito fundamental à internet)

    Aprova o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na Guatemala, por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 5 de junho de 2013; Decreto nº 10.932, de 10.1.2022 – Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013.

    [5] Nesse sentido: https://www.nic.br/noticia/na-midia/starlink-a-internet-de-elon-musk-leva-euforia-e-medo-para-a-amazonia/. Acesso em 08 de junho de 2024.

    [6] Nesse âmbito, recomendamos aos alunos o estudo dos seguintes casos: Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua e Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros x Brasil.

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