Olá, pessoal! Hoje veremos acerca da decisão do STF que julgou inconstitucional a desqualificação da vítima em processos criminais de violência contra a mulher.
* Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.
1. Desqualificação da mulher: decisão do Supremo Tribunal Federal
A Suprema Corte, na ADPF 1.107/DF, entendeu que é inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais[1].
2. Desqualificação da mulher: criminologia feminista e direito processual penal feminista
Contemporaneamente, doutrinadores vêm se debruçando em conferir uma nova lente à Criminologia e ao Direito Processual Penal. Em sua decisão, o STF abordou uma evolução histórica e cultural que coloca a mulher em uma posição inferior na sociedade.
Essa nova abordagem, irá permitir que se estude o criminoso, a vítima, o controle social e os comportamentos delitivos e o processo por meio de uma lente diferenciada – uma lente feminista. Conforme explica Soraia da Rosa Mendes, “A criminologia nasceu como um discurso de homens, para homens, sobre as mulheres”[2].
A Criminologia Feminista, por meio de uma lente privilegiada da realidade, permite uma aproximação da experiência e realidade das mulheres. O paradigma e os pilares de sustentação dessa nova forma de análise criminológica rompem com o modelo tradicional, sexista e patriarcal. Essa forma de analisar a Criminologia e o Processo permite a real compreensão da realidade da mulher, logrando êxito em não deixar de lado aspectos obscuros da realidade e evitando traduções errôneas da realidade, especialmente nos casos de violência contra a mulher, no qual o STF julgou inconstitucional a desqualificação da mulher.
2.1. Precedentes do STF
Essa forma de pensar permite uma análise mais adequada, por exemplo, das questões inerentes à violência de gênero, pois inclui as mulheres nos estudos criminológicos. Essa lente diferenciada levou a Suprema Corte, por exemplo, a analisar a mulher como vítima, firmando-se as seguintes teses:
2.2. Teses firmadas na ADPF 779 (STF)
- Firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF);
- Conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência;
- Obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penal, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
3. Desqualificação da mulher: inconstitucionalidade da desqualificação da vítima em processos criminais de violência contra a mulher
Importante consignar que existe uma transversalidade entre a Criminologia Feminista e o Direito Processual Penal Feminista. No julgamento perante o Tribunal do Júri, uma visão feminista nos faz concluir pela impossibilidade de argumentos que violem a dignidade das mulheres, a exemplo da tese da legítima defesa da honra. Não podemos coadunar com posicionamentos que culminam com a desconstrução da mulher e com uma verdadeira inversão do ônus da prova, fazendo com que as mulheres tenham que provar que fazem jus a proteção do Estado.
Conforme exposto pelo STF, é comum que, nas audiências, questões pessoais e da vida pregressa da mulher, inclusive seus hábitos sexuais, sejam questionados com o único intuito de justificar a conduta do agressor.
Importante destacar que os referidos questionamentos não possuem base legal, constitucional e nem mesmo convencional, ferindo a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF).
3.1. Teses do STF
Assim, almejando evitar a denominada vitimização secundária, concluiu o STF por unanimidade que:
- conferir interpretação conforme a Constituição à expressão elementos alheios aos fatos objeto de apuração posta no art. 400-A do CPP/1941 (1), para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP/1941 (2);
- vedar o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade de o acusado se beneficiar da própria torpeza;
- conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 59 do CP/1940 (3), para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida; e
- assentar ser dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.
- por fim, o Tribunal determinou o encaminhamento do acórdão deste julgamento a todos os tribunais de justiça e tribunais regionais federais do país, para que sejam adotadas as diretrizes ora determinadas.
REFERÊNCIAS:
[1] Disponível em https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/noticias/stf-proibe-desqualificacao-de-mulher-vitima-de-violencia-sexual. Acesso em 11 de junho de 2024.
[2] MENDES, Soraia da Rosa. (RE)PENSANDO A CRIMINOLOGIA: REFLEXÕES SOBRE UM NOVOPARADIGMA DESDE A EPISTEMOLOGIA FEMINISTA. Universidade de Brasília. 2012. Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília, PPG/FD/UnB, como requisito parcial à obtenção do grau de Doutora em Direito, Estado e Constituição, sob a orientação da Profa. Dra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho, página 187.
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