Desenredamento não autorizado configura molestamento intencional de cetáceos? O caso da baleia-franca em Santa Catarina

Desenredamento não autorizado configura molestamento intencional de cetáceos? O caso da baleia-franca em Santa Catarina

Como se sabe, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) investiga possível infração ambiental cometida por Marcos Antônio Souza, que em 17 de julho de 2025 realizou desenredamento não autorizado de baleia-franca na Praia da Pinheira, em Palhoça, Santa Catarina. 

Desenredamento

Nesse sentido, o objetivo aqui é demonstrar, tecnicamente, qual seria a infração e onde isso encontra-se previsto. Vamos entender melhor.

Isto porque, a conduta, filmada pelo fotógrafo Carlos Anselmo e viralizada nas redes sociais, enquadra-se perfeitamente na tipificação estabelecida pelo artigo 12 da Portaria Conjunta MMA/Ibama/ICMBio nº 3/2024, que caracteriza tal atividade como “molestamento intencional de cetáceos“, sujeitando o infrator à multa de R$ 2.500 prevista no artigo 30 do Decreto nº 6.514/2008.

Fundamentação jurídica da tipificação: molestamento intencional versus boa intenção

Veja, de início, a tipificação da conduta encontra fundamento direto no artigo 12 da Portaria Conjunta nº 3/2024, que estabelece marco temporal preciso:

“Após o período de 120 (cento e vinte) dias da data da publicação desta Portaria Conjunta, as atividades de desenredamento de grandes cetáceos realizadas por instituições não autorizadas e/ou pessoas não habilitadas serão caracterizadas como molestamento intencional de cetáceos”. 

Ora, considerando que a portaria foi publicada em 8 de janeiro de 2024, o prazo de 120 dias expirou em maio de 2024, tornando a conduta de Souza, ocorrida em julho de 2025, inequivocamente tipificada.

Dessa maneira, o elemento subjetivo merece análise dogmática aprofundada. 

Nessa linha, o artigo 30 do Decreto nº 6.514/2008 exige molestamento “intencional”, configurando tipo subjetivo doloso que demanda vontade livre e consciente dirigida ao resultado. 

Entretanto, a jurisprudência ambiental, contudo, tem interpretado a intencionalidade de forma objetiva quando há violação consciente de normas proibitivas específicas. 

Inclusive, a jurisprudência considera na verdade, a responsabilidade objetiva:

1. A responsabilidade civil por dano ambiental é objetiva, conforme art. 14, §1º, da Lei nº 6.938/1981 e art. 225, §3º, da CF/1988, bastando a comprovação do nexo causal entre a intervenção e o dano ambiental, independentemente da existência de dolo ou culpa. 2. A abertura de valeta em área de preservação permanente, em desconformidade com as normas ambientais e sem a devida autorização, configura intervenção ilícita, sendo irrelevante a alegação de boa-fé ou a suposta natureza da vegetação existente. 3. A tese de que a intervenção estaria autorizada pelo Decreto Estadual nº 47.749/2019 não se sustenta, pois a limpeza manual prevista nesse diploma não abrange a abertura de valetas e exige prévia autorização. 4. Não restou comprovada a configuração de área rural consolidada, nos termos do art. 18 da Lei Estadual nº 20.922/2013, apta a justificar a limitação da recuperação ambiental requerida pela apelante. 5. Embora a regeneração natural parcial não afaste o dever de indenizar pelos danos interinos causados, a fixação do valor da indenização deve observar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sendo adequada sua redução, considerando as peculiaridades do caso. 6. Recurso parcialmente provido. (TJMG; APCV 5154851-35.2024.8.13.0000; Sexta Câmara Cível; Relª Desª Sandra Fonseca; Julg. 18/06/2025; DJEMG 25/06/2025)

2. A responsabilidade administrativa ambiental do proprietário do bem independe da demonstração de má-fé ou dolo. 3. Não configura nulidade do processo administrativo ambiental a ausência de auto de infração em nome do proprietário, quando este foi devidamente cientificado e exerceu o contraditório e a ampla defesa. Legislação relevante citada: Lei nº 9.605/1998, arts. 25 e 72, IV; Decreto nº 6.514/2008, art. 3º, IV; Lei nº 6.938/1981, art. 3º, IV; Lei nº 9.873/1999, arts. 1º e 2º; Lei nº 9.784/1999; CPC, arts. 85, § 11, e 98, § 3º. Jurisprudência relevante citada: STJ, RESP 1.814.945/CE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, j. 10.02.2021, DJe 24.02.2021 (Tema 1036/STJ). (TRF 1ª R.; AC 1000898-26.2022.4.01.3600; Décima Primeira Turma; Rel. Des. Fed. Newton Pereira Ramos Neto; DJe 11/06/2025)

Desenredamento de cetáceos

Ora, no caso em análise, Souza admitiu publicamente que “a ação foi planejada” e que “avaliou as condições do mar, do tempo e da baleia”, demonstrando inequívoco dolo direto na realização da atividade de desenredamento.

Por outro lado, a aparente contradição entre a boa intenção do agente e a exigência legal de “molestamento intencional” resolve-se pela compreensão de que o tipo penal protege não apenas o bem-estar imediato do animal, mas o sistema regulatório de proteção à fauna marinha, conforme a jurisprudência. 

Ora, a Portaria nº 3/2024 define no artigo 2º, inciso I, que desenredamento constitui “atividade de desemalhe destinada à extração do equipamento de pesca, ativo ou inativo, enredado ou preso em grandes cetáceos”. 

Dessa maneira, ao realizar conscientemente tal atividade sem autorização, o agente pratica conduta subsumível ao tipo, independentemente da finalidade altruísta.

Porém, é fato, não sabemos como a jurisprudência vai interpretar o fato, em razão da repercussão.

Contexto normativo: evolução da regulamentação e imperatividade dos protocolos técnicos

De início, a Portaria Conjunta nº 3/2024 representa sofisticação regulatória significativa na proteção de cetáceos, estabelecendo sistema complexo de credenciamento, treinamento e autorização. 

Isto porque, o artigo 6º determina que “o treinamento para a atividade de desenredamento será necessariamente ministrado por instrutores habilitados pelo programa de treinamento desenvolvido pela Comissão Internacional da Baleia”, evidenciando incorporação de standards internacionais na normatização brasileira.

De fato, o diploma legal exige das instituições autorizadas estrutura técnica específica, incluindo “comprovação de habilitação de, no mínimo, 04 (quatro) resgatistas” e “equipamento de engate e corte fabricado de acordo com os padrões internacionais”, conforme artigo 7º.

A justificativa técnica é que esta exigência fundamenta-se em evidências científicas sobre riscos do desenredamento inadequado, que pode causar “separação de filhotes, abandono de área de reprodução ou ferimentos durante tentativas de fuga”.

Inclusive, Eduardo Renault-Braga, gerente do ProFRANCA, confirmou que “baleias se enroscam em redes de pesca com certa frequência” e que “na maioria dos casos, as baleias conseguem se livrar sozinhas dos resíduos, pois o atrito com as calosidades costuma romper as redes”. 

Assim, esta informação técnica corrobora a racionalidade da estratégia de monitoramento passivo adotada pelo Ibama, que optou por “manter o monitoramento a distância e aguardar que o material se desprendesse naturalmente”.

Aspectos procedimentais: configuração do tipo e ônus probatório

Ademais, a configuração da infração dispensa comprovação de dano efetivo ao animal, constituindo tipo de perigo abstrato que se consuma com a mera realização da conduta proibida. 

Isto porque, o artigo 8º da Portaria nº 3/2024 estabelece que “a atividade de desenredamento deverá ser exercida exclusivamente por instituições autorizadas e por resgatistas treinados e equipados”, criando norma proibitiva absoluta cuja violação independe de resultado lesivo.

Lado outro, o procedimento administrativo sancionador deve observar o princípio da tipicidade estrita, exigindo demonstração de que a conduta praticada subsume-se ao conceito de “desenredamento” estabelecido na portaria. 

No caso em análise, Souza utilizou “equipamento improvisado” para “cortar a rede”, configurando precisamente a “atividade de desemalhe destinada à extração do equipamento de pesca” definida no artigo 2º, inciso I.

Obviamente, a defesa processual poderá questionar a proporcionalidade da sanção face à motivação altruísta, mas tal alegação não possui amparo jurisprudencial consolidado.

Como dito, o Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente decidido que “a boa-fé do agente não constitui excludente de responsabilidade administrativa quando há violação objetiva de norma ambiental específica”, prevalecendo o interesse público na preservação dos protocolos técnicos de proteção à fauna.

Entretanto, a viralização do vídeo – que “ultrapassou 6,3 milhões de visualizações” – amplifica o potencial pedagógico do precedente, transformando a sanção em instrumento de educação ambiental. 

Como o tema já caiu em provas:

Prova: VUNESP – 2025 – Prefeitura de Campinas – SP – Procurador do Município I

Considere que José comprou de Jerônimo – primeiro proprietário – um imóvel localizado na zona rural, em uma altitude superior a 1.800 m (mil e oitocentos metros), por preço inferior ao costumeiramente praticado no mercado. A oferta era tão significativa que José não se atentou aos detalhes do bem. Após a tradição do imóvel, quando José foi investido também na posse, notou a degradação presente: desmatamento da floresta, contaminação do lago com mercúrio e utilização de parte do terreno como depósito de lixo orgânico. Com o fim de se livrar do problema, imediatamente colocou o imóvel à venda. No entanto, o bem só foi vendido dois anos depois, a Luciano. Após dois anos da venda do imóvel, enquanto Luciano ainda era proprietário, José foi citado em uma ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente proposta pelo Ministério Público do Estado.

Com base na situação hipotética apresentada e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, assinale a alternativa correta.

a) A responsabilidade civil ambiental é do tipo integral, mas, para sua configuração, devem estar presentes a conduta, o nexo de causalidade e o dano, de forma que o único a ser responsabilizado civilmente é Jerônimo, o primeiro proprietário do bem.

b) Como a reparação dos danos ambientais é considerada como propter rem, o único legitimado passivo da ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente é Luciano, na medida em que a natureza propter rem afasta a solidariedade da obrigação ambiental.

c) José pode ser responsabilizado civilmente pelos danos causados ao meio ambiente, pois, além de a obrigação ambiental ser objetiva, caracterizada pela solidariedade e ter caráter ambulatorial, ele recaiu na prática de omissão ilícita.

d) A ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente proposta pelo Ministério Público do Estado será extinta sem resolução do mérito, pois, como o imóvel está localizado na zona rural, a legitimidade ativa é concorrente do Ministério Público Federal ou da União.

e) A ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente proposta pelo Ministério Público do Estado será julgada improcedente, pois o imóvel comprado por José não é considerado como área de preservação permanente, nos termos do Código Florestal.

Gabarito: Letra C

  • Responsabilidade civil por danos ambientais é propter rem, objetiva e solidária (STJ, REsp 1.962.089)
  • Súmula 623 do STJ: As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor

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