Olá, corujas!
Sou o professor Allan Montoni Joos, defensor Público do Estado de Goiás, professor universitário e de pós-graduação, pós-graduado em Direito Público, autor e palestrante, e coordenador no Estratégia Carreira Jurídica.
Trouxe abaixo uma análise para reflexão sobre o tema: Descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. O que será decidido?
Tramita no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário nº 635659, com repercussão geral, que discute a descriminalização da posse ou do porte de drogas para consumo pessoal. Em síntese, o recurso extraordinário em questão discute a constitucionalidade ou não do artigo 28 da Lei nº 11.343/06.
O caso que foi levado ao Supremo Tribunal Federal tem por objeto o julgamento de um homem condenado, no Estado de São Paulo, pela prática do referido crime após ter sido flagrado 3 gramas de maconha dentro da cela onde já cumpria pena por outro delito, em Diadema, São Paulo. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo afirma que o crime de porte de drogas para consumo pessoal ofende o princípio da intimidade e da vida privada, previsto no artigo 5º, da Constituição Federal. Ainda, o referido recurso extraordinário discute a inconstitucionalidade do referido tipo penal ao destacar que a conduta não afronta a saúde pública, mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário.
Sabe-se que formalmente, nos termos do artigo 28, da denominada Lei de Drogas, todo aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às penas não privativas de liberdade ali previstas (advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade, ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo). Trata-se, portanto, de um tipo penal incriminador, apesar de, por questões de política criminal, não prever uma pena privativa de liberdade.
Por outro lado, aquele que pratica alguma das inúmeras condutas contidas no artigo 33 da Lei de Drogas, ou seja, realiza a conduta denominada de “tráfico de drogas”, estará sujeito a uma pesada pena privativa de liberdade que pode chegar até a 15 anos de reclusão.
Apesar de as condutas estarem insertas em tipos distintos e preverem sanções diametralmente diversas, a distinção entre o usuário e o traficante possui elevado grau de subjetividade. Note-se que o §2º do artigo 28 da referida Lei dispõe que para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
E justamente em razão desse excesso de subjetividade é que são evidentes as distorções com a prisão, por tráfico, de pessoas com pequena quantidade de drogas, mesmo havendo dúvida acerca da traficância. As estatísticas, inclusive, demonstram uma maior tendência de criminalização de determinados grupos da sociedade, em regra pessoas negras, pobres e de baixa escolaridade, ao passo que outros grupos, com maiores privilégios e muitas vezes na posse de elevada quantidade de entorpecentes, acabam sendo tratados como usuários.
Essas constatações fazem parte das manifestações de alguns dos ministros já votantes, a exemplo do Ministro Alexandre de Morais para quem o porte de pequena quantidade de entorpecentes passou, em muitos casos, a ser qualificado como tráfico, tornando a punição mais dura e aumentando significativamente o número de presos por tráfico. Além disso, pessoas presas com a mesma quantidade de droga e em circunstâncias semelhantes podem ser consideradas usuárias ou traficantes, dependendo da etnia, de nível de instrução, renda, idade ou de onde ocorrer o fato. Para o ministro, essa distorção decorre do excesso de discricionariedade para diferenciar usuários de traficantes. Em respeito ao princípio da isonomia, ele destacou a necessidade de que os flagrantes de drogas sejam tratados de forma idêntica em todo o país. “O STF tem o dever de exigir que a lei seja aplicada identicamente a todos, independentemente de etnia, classe social, renda ou idade”, afirmou[1].
Neste ponto, é importante destacar que são inúmeros os estudos que indicam que, de um modo geral, as acusações tendem a encarcerar em grande maioria pessoas negras e pobres, em grave distorção quando analisados os dados em relação às pessoas brancas e de maior status social. A título de exemplo, destaca-se pesquisa que apontou como a justiça paulista sobrerepresentou as pessoas negras nas condenações por tráfico. A pesquisa aponta, inclusive, que no referido Estado a população prisional é de 240.000 detentos para 131 mil vagas disponíveis, uma taxa de 183% de ocupação, segundo os dados de 2016 do Departamento Penitenciário Nacional. Além disso, 56% do sistema prisional é composto por negros e 44% por brancos[2].
Essa ausência de critérios objetivos para a distinção entre o usuário e o traficante não apenas foi significativa para refletir o racismo estrutural existente na nossa sociedade, como também para ensejar um grande aumento da população carcerária brasileira, elevando o Brasil à 3º colocação dentre os países que mais encarceram no mundo.
E nesse cenário de graves distorções e encarceramento em massa de determinados grupos sociais o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do já mencionado RE 635659.
Abaixo, segue o resumo de cada um dos votos:
O Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto realizado no último dia 02 de agosto de 2023, propôs a fixação de um critério nacional, exclusivamente em relação à maconha, para diferenciar usuários de traficantes.
Em sua manifestação, o ministro propôs que sejam presumidas como usuárias as pessoas flagradas com 25g a 60g de maconha ou que tenham seis plantas fêmeas. Ele chegou a esses números a partir de levantamento que realizou sobre o volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo, entre 2006 e 2017. O estudo foi realizado em conjunto com a Associação Brasileira de Jurimetria e abrangeu mais de 1,2 milhão de ocorrências com drogas. Segundo o Ministro, referido critério não impede a autoridade judiciária ou policial de realizar a prisão em flagrante quando, apesar da quantidade estar definida dentro dos parâmetros mencionados, outros elementos indicarem a conduta do tráfico.
De sua vez, em votos anteriores do mesmo julgado, os Ministros Luiz Roberto Barroso, Edson Fachin e Gilmar Mendes também votaram a favor da descriminalização, porém com parâmetros e abrangências distintas no que tange à descriminalização do uso.
Luiz Roberto Barroso votou pela descriminalização da maconha com a indicação de um critério objetivo consistente em 25g de cannabis como presunção de uso ou plantação de até seis plantas fêmeas para diferenciar consumo do tráfico até que o Congresso Nacional edite lei sobre o tema. Já o Ministro Edson Fachin votou pela descriminalização da maconha sem estabelecimento de um critério objetivo, porém entende que os parâmetros para diferenciar usuário de traficante devem ser fixados pelo Congresso Nacional. Gilmar Mendes votou pela descriminalização de todas as drogas. Este último, após voto do Ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, pediu adiamento do julgamento para construção de uma solução consensual diante dos novos argumentos e da mudança das circunstâncias desde 2015, quando apresentou o seu voto, com a implementação das audiências de custódia.
A discussão sobre a descriminalização das drogas não é exclusivo de nosso país. Pelo contrário, diversos países já descriminalizaram o uso de drogas, em especial a maconha. Portugal descriminalizou a posse de drogas, inclusive para a cocaína. No que tange à maconha, o regramento deste último país estabeleceu que a posse de até 25 gramas de cannabis é considerada posse para consumo, assim como o cultivo de até seis plantas fêmeas. Na Argentina, a posse de drogas para consumo pessoal não é crime, mas não há uma regra clara e objetiva que distinga traficantes de usuários. Já no Uruguai, toda a cadeia da maconha é legalizada, mas é exigida licença para o exercício de cada uma das atividades, tais como uso, comercialização e plantação. Na Espanha há clubes legalizados em que os membros pagam uma quantia mensal para consumir cannabis. Na Holanda, a legislação ainda criminaliza o uso e o comércio, porém, por uma prática de costumes, a penalização não mais ocorre. Nos Estados Unidos, há regras distintas que vão desde a criminalização completa, até a existência de espaços reservados para venda e uso.
Não há dúvidas de que a conclusão do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal será paradigmática, em especial pelo fato de que os votos até então apresentados indicam uma tendência, ainda que parcial, de descriminalização do artigo 28 relativamente ao porte e posse de maconha para uso pessoal.
Certamente haverá um indicativo para que o Congresso Nacional edite norma que vise, ao menos, a sanar as distorções trazidas pela Lei nº 11.343/06. Assim que proferido julgamento definitivo, faremos um novo texto para atualização
[1] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=511645&ori=1 acessado em 05/08/2023.
[2] <https://portal.trt23.jus.br/trtnoticias/noticias/fique-sabendo-fique-por-dentro/18277> acessado em 05/08/2023.
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