* Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.
Entenda o cabo de guerra
Conforme noticiado1, a OAB/RJ propôs a criação de advocacia dativa no Estado do Rio de Janeiro em parceria com municípios com o objetivo principal de promover a oferta de oportunidades de trabalho para advogados(as) e ampliar o acesso à Justiça para a população de baixa renda.
Em entrevista, a Presidente da OAB/RJ destacou que
"Esse é um projeto muito importante. O município faz uma tabela de honorários e nomeia advogados para atender pessoas humildes, que não são atingidas pela Defensoria Pública. Não gera grande despesa para o município, vai dar trabalho para a advocacia e oportunidade a pessoas carentes de terem acesso à Justiça. Nossa ideia é levar a advocacia dativa para todo o Estado"2.
Em que pese a intenção da OAB/RJ, mesmo diante de julgamento do Supremo Tribunal Federal autorizando assistência judiciária municipal, o projeto expansionista da advocacia dativa é de constitucionalidade duvidosa.
Um olhar crítico sobre a possibilidade de assistência judiciária municipal
O STF, no julgamento da ADPF n. 279, permitiu a assistência judiciária municipal. Em que pese a decisão da Suprema Corte pela constitucionalidade da assistência jurídica/judiciária municipal, em nosso ponto de vista, a referida decisão deve ser analisada sob um viés crítico, pois fundada em premissas equivocadas que ignoram diretrizes básicas envolvendo o histórico e a normativa constitucional e defensorial, ressalvando-se o voto vencido do ministro Nunes Marques.
Argumentos constitucionais
A assistência jurídica municipal viola o princípio do pacto federativo. Trata-se de matéria de competência legislativa concorrente e cabe à União estabelecer as normas gerais e aos estados e ao Distrito Federal disporem de forma suplementar (artigo 24, parágrafos 1º e 2º, da Constituição). Porém, ao que parece, o STF conferiu caráter complementar e suplementar, nos termos do art. 30, incisos I e II, da Carta Magna. Entrementes, é certo que esse entendimento da Suprema Corte prejudica, em muito, a concretização da EC n. 80, a qual prevê a necessidade de termos defensores públicos em todas as comarcas até 2022 (prazo já esgotado), destacando-se que o referido julgado poderá causar impactos políticos e econômicos para a devida estruturação da Defensoria Pública.
Como se não bastasse, a decisão do STF viola o modelo público de assistência jurídica de Defensoria Pública adotado pela Constituição Federal (art. 134, CF). Eventual despesa com o referido serviço público deveria ser realizada com a estruturação da Defensoria Pública. A Constituição Federal continua adotando o modelo público de prestação de assistência jurídica.
É importante deixar claro que não existe Defensoria Pública municipal. Não importa o nome que se dê. Temos que se preocupar menos com a forma e com o nome e mais com o conteúdo e a matéria. Certamente, trata-se de serviço que viola frontalmente a normativa constitucional.
A referida decisão é tão absurda e fora da curva que entendemos que qualquer prestação de assistência jurídica municipal deverá ocorrer por meio de convênios com a Defensoria Pública.
Argumento político-administrativo

Importante frisar que a EC n. 80/14 estabeleceu o dever estatal de fixar defensores públicos federais e estaduais em todas as unidades jurisdicionais até 2022. Como se não bastasse a violação do modelo de Defensoria Pública adotado pelo Poder Constituinte Originário, temos gravíssima violação ao Poder Constituinte Derivado, que emendou a Constituição de 1988.
Será que o mandamento constitucional será cumprido? Como vimos, o prazo já se esgotou e estamos longe de termos Defensorias em todas as comarcas. Certamente, o referido julgado enfraquecerá o comando constitucional e a força normativa da Constituição. Conforme estudamos, eventual despesa com o referido serviço público deveria ser realizada com a estruturação da Defensoria Pública.
Argumentos pragmáticos
Questiona-se: quem irá fiscalizar, eventualmente, mais de 5.500 serviços de assistência jurídica municipal? A expansão da advocacia dativa poderá culminar em um assistencialismo eleitoral e, consequentemente, enfraquecer as Defensorias Públicas, tornando mais precário o serviço de assistência jurídica.
Apenas de maneira exemplificativa, logo após o referido julgado, o município do Rio de Janeiro encaminhou projeto de lei envolvendo assistência jurídica municipal. Questiona-se: quais foram as bases para a referida proposta?
No estado do Rio de Janeiro, a Defensoria Pública está devidamente estruturada nos 92 municípios – inclusive onde não há comarca. Talvez, no município do Rio de Janeiro, tenhamos a melhor estruturação de Defensoria Pública no país, com quantidade de defensores adequada à prestação do serviço público de assistência jurídica integral e gratuita. Assim, em diversos municípios, na inexistência de fiscalização adequada, poderá existir desvio de finalidade e abuso de direito na instrumentalização da decisão da Suprema Corte, o que deverá ser devidamente analisado pelas diversas Defensorias Públicas, utilizando-se de instrumentos extrajudiciais (recomendação, termo de ajustamento de conduta e inquérito civil) e judiciais (ação de obrigação de não fazer e até mesmo ação de improbidade administrativa) para evitar ilegalidades e prejuízos à população vulnerável.
Modelo público e adequação a realidade brasileira
Atualmente, o modelo adotado pela Constituição Federal de 1988, nos termos do art. 134 e do e do art. 4º, § 5º, da LC n. 80/94, é o modelo público de Defensoria Pública. É importante que isso fique claro aos nossos leitores. Ademais, trata-se do modelo indicado pela Organização dos Estados Americanos por meio de inúmeras resoluções3.
O modelo público possui custo inferior se comparado aos outros modelos. Trata-se, portanto, de modelo menos custoso ao Poder Público e mais adequado a sociedade brasileira4. Trata-se de modelo com maior profissionalização e especialização, permitindo-se não apenas uma atuação individual, como também coletiva; não apenas demandista, mas também preventiva, superando-se um modelo individualista e demandista, com forte viés social, mais adequado à realidade brasileira.
Assim, enquanto não superada a equivocada decisão do STF, de forma a adequar a decisão da Suprema Corte à realidade brasileira, entendemos que qualquer prestação de assistência jurídica municipal deverá ocorrer por meio de convênios com a Defensoria Pública e tão somente nos locais não alcançados pela Defensoria Pública.
- Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/429237/oab-rj-propoe-advocacia-dativa-no-estado-em-parceria-com-municipios. Acesso em 29 de abril de 2025. ↩︎
- Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/429237/oab-rj-propoe-advocacia-dativa-no-estado-em-parceria-com-municipios Acesso em 29 de abril de 2025. ↩︎
- A exemplo da Resolução n. 2.656/2011. ↩︎
- Recomenda-se a leitura da Pesquisa Nacional da Defensoria Pública: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/. ↩︎
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