A restrição das decisões monocráticas do STF pelo Senado Federal

Sou o professor Marcos Gomes, Defensor Público do Estado de São Paulo, Coordenador da Coleção Defensoria Pública Ponto a Ponto e Especialista em Direito Público.

Trouxe abaixo uma análise para reflexão sobre o tema: A restrição das decisões monocráticas do STF pelo Senado Federal.

O Senado Federal aprovou o Projeto de Emenda a Constituição n. 8 de 2021, o qual limita decisões monocráticas no âmbito do Supremo Tribunal Federal e outros Tribunais Superiores[1].

Entenda a divergência:

            Por um lado, existe posicionamento jurídico e até mesmo político, no sentido de que a decisão de um ministro do STF, monocraticamente, não poderia se sobrepor a uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Poder executivo. Nesse sentido, defende-se que eventual decisão para declarar inconstitucional lei ou ato normativo respeite o princípio da colegialidade – seja tomada por decisão conjunta dos membros da Suprema Corte, o que culminaria em maior segurança jurídica.

            Por outro lado, há quem sustente que estaríamos diante de uma retaliação em virtude de a Suprema Corte estar enfrentando temas sensíveis, a exemplo do aborto e da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Assim, a referida decisão estaria ferindo o princípio da Separação dos Poderes.

O que diz a legislação atual:

            Em relação a ação direta de inconstitucionalidade, a Lei n. 9.868/99, dispõe no art. 10 que “Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias”.

            No que tange a ação declaratória de constitucionalidade, a legislação acima destacada sequer prevê a possibilidade de decisão cautelar monocrática do relator. Nos termos do art. 21, “O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo”.

            Já a Lei n. 9.882/99, que regulamenta a ação de descumprimento de preceito fundamental, estabelece no art. 5º, §1º que “Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno”.

Problemas concretos para compreensão:

A Lei Complementar 135/2010, também denominada Lei da Ficha Limpa, teve amplo apoio popular, reunindo mais de 1,5 milhão de assinaturas com o escopo de aumentar a idoneidade dos candidatos às eleições. O projeto da referida lei foi aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal por votação unânime. Posteriormente, foi sancionada pelo Presidente da República, culminando na Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. Como se não bastasse, o próprio Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a referida legislação, nos termos das ADC n. 29 e 30.

Ocorre que, durante o recesso, em 19 de novembro de 2020, ou seja, cerca de 10 anos após sua criação, foi deferida uma cautelar para suspender trechos da referida legislação, a qual teve amplo apoio popular, foi aprovada na Câmara dos Deputados, no Senado Federal, sancionada pelo Presidente da República e declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Como se não bastasse, posteriormente, contrariando a decisão monocrática, a legislação fora novamente declarada constitucional pelo colegiado do STF. Notem a insegurança jurídica causada em virtude de uma decisão monocrática!

Em que pese o texto cristalino da legislação, no sentido de que somente no período de recesso o relator poderia eventualmente proferir uma decisão monocrática em ADI, nem sempre o comando legal é respeitado, o que culmina no descumprimento do texto legal. Vejamos o seguinte caso concreto apresentado na justificativa da PEC:

“Em caso recente e emblemático, houve decisão cautelar monocrática na ADI no 6.363 (DJ 06/04/2020), em que se deu interpretação conforme ao art. 11, § 4o, da Medida Provisória no 932, de 2020, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, para fixar que o sindicato da categoria deveria se manifestar previamente à entrada em vigor do acordo para redução da jornada ou suspensão de contrato de trabalho durante a presente crise do coronavírus. Durante mais de dez dias, viveu-se verdadeiro caos trabalhista no Brasil: diversos acordos individuais foram firmados, sem saber-se se seriam válidos ou não, em face da decisão monocrática do STF. Em sessão de 17 de abril de 2020, a decisão foi cassada pelo Pleno, tendo em vista a situação absolutamente excepcional vivenciada e que exige medidas céleres de negociação entre empregadores e empregados, sem prejuízo da função fiscalizatória dos sindicatos”[2].

Alteração proposta pela PEC:

            Almejando garantir maior segurança jurídica e equilíbrio entre os Poderes, o Projeto de Emenda a Constituição n. 8 de 2021 propõe algumas mudanças no art. 102 da Constituição Federal. Em apertada síntese:

  o pedido de medida cautelar nas ADIs, ADCs, ADPFs e ADI por omissão deverá ser analisado pelo colegiado, aplicando-se o caput do art. 97, da CF;

 somente durante o recesso do Judiciário, será permitida decisão monocrática em casos de grave urgência ou perigo de dano irreparável, devendo o Tribunal julgar o caso em até 30 dias corridos depois da retomada dos trabalhos judiciários, sob pena de perda da eficácia da decisão concedida;

 As regras acima também se aplicariam às decisões que: I – suspenda a tramitação de proposição legislativa que viole as normas constitucionais do devido processo legislativo; II – em caráter geral afete politicas públicas ou crie despesas para qualquer Poder, inclusive as decorrentes de concessão de aumentos ou extensão de vantagens ou pagamentos de qualquer natureza;

 Deferido o pedido de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental ou ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o respectivo mérito deve ser apreciado em até seis meses.

Conclusões:

            Grande parte da comunidade jurídica vem se manifestando no sentido de um ativismo judicial exagerado por parte do Supremo Tribunal Federal, inclusive invadindo áreas de atuação típica do Poder Legislativo.

            Uma das possíveis consequências da atuação do STF refere-se ao efeito backlash. Trata-se de uma forte reação da sociedade ou de algum dos Poderes à algum ato do Poder Público – seja uma decisão judicial, ato administrativo ou lei emanada do legislativo. Em questões polêmicas decididas pelo Poder Judiciário, trata-se de uma intensa rejeição pública ou de algum dos Poderes a uma decisão judicial – no caso em análise do Poder Legislativo.

            Nos termos da justificativa da proposta apresentada, “são enormes os riscos à separação de Poderes e ao Estado de Direito provocados pelo ativismo irrefletido, pela postura errática, desconhecedora de limites e, sobretudo, pela atuação atentatória ao princípio da colegialidade verificado no Supremo Tribunal Federal (STF)”[3].

            Em resposta com tom extremamente forte diante da aprovação da PEC no Senado Federal, o ministro Gilmar Mendes declarou que os autores da proposta iniciaram a empreitada “travestidos de estadistas presuntivos e a encerraram melancolicamente como inequívocos pigmeus morais” e que “não se pode brincar de fazer emenda constitucional”[4].

            De fato, muitas novidades ainda estão por vir, notadamente se a proposta for aprovada na Câmara dos Deputados e se tornar uma emenda à Constituição. Certamente, o caso deverá ser judicializado e o check and balances entre os Poderes deverá ser mais uma vez colocado em teste. Espera-se, ao final, o reforço do Estado de opção democrática!


[1]  https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/11/22/senado-aprova-pec-que-limita-decisoes-individuais-em-tribunais#:~:text=O%20Senado%20aprovou%20nesta%20quarta,STF)%20e%20outros%20tribunais%20superiores.

[2] Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8950982&ts=1700762856966&disposition=inline&_gl=1*4ekpuy*_ga*MTQzNjE2MDkxOS4xNzAwNzc0OTQ2*_ga_CW3ZH25XMK*MTcwMDc3NDk0NS4xLjEuMTcwMDc3NDk2My4wLjAuMA. Acesso em 23 de novembro de 2023.

[3] Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8950982&ts=1700762856966&disposition=inline&_gl=1*4ekpuy*_ga*MTQzNjE2MDkxOS4xNzAwNzc0OTQ2*_ga_CW3ZH25XMK*MTcwMDc3NDk0NS4xLjEuMTcwMDc3NDk2My4wLjAuMA. Acesso em 23 de novembro de 2023.

[4] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/gilmar-chama-pec-de-ressurreicao-de-cadaver-e-autores-de-pigmeus-morais/. Acesso em 23 de novembro de 2023.

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