* Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) possui algumas decisões sobre transexuais que vêm sendo muito cobradas em prova1 e, agora, proferiu nova decisão importantíssima sobre o tema.
O STF decidiu, na ADPF n. 787, que transexuais e travestis possuem direito ao atendimento médico de acordo com as suas necessidades biológicas e direito à correta identificação nas DNVs de seus filhos.
Vamos compreender melhor essa decisão, que irá despencar em provas de carreiras jurídicas!
O Ministério da Saúde deve garantir atendimento médico a pessoas transexuais e travestis, de acordo com suas necessidades biológicas, e acrescentar termos inclusivos para englobar a população transexual na Declaração de Nascido Vivo (DNV) de seus filhos.
Quais foram os fundamentos dessa decisão?
A decisão da Suprema Corte se fundamenta na dignidade da pessoa humana, no direito à saúde e no direito à igualdade (CF/1988, arts. 1º, III, 3º, IV, 5º, caput, e 6º, caput).
No ponto, importante destacar que, para os concursos de carreiras jurídicas, nossos alunos devem estar atentos a ideia de igualdade formal, igualdade material, bem como ao conceito de igualdade como reconhecimento. Em nosso curso de Direito Constitucional para Defensorias, destacamos trecho do voto do Ministro Luíz Roberto Barroso, na ADC n. 41 Vejamos:
“Igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras”.
Quais são as consequências práticas que se buscam com essa decisão?
a) permitir o acesso às políticas públicas de saúde existentes sem a imposição de barreiras burocráticas. Evita-se causar constrangimento, discriminação e sofrimento à pessoa trans.
b) acesso igualitário às ações e aos programas de saúde do SUS, em especial aqueles relacionados à saúde sexual e reprodutiva, como o agendamento de consultas nas especialidades de ginecologia, obstetrícia e urologia, independentemente de sua identidade de gênero.
c) a Declaração de Nascido Vivo (DNV) expedida por hospitais no momento do parto de uma criança que nasce com vida, deve ter seu layout atualizado para que conste a categoria “parturiente/mãe” de preenchimento obrigatório e o campo “responsável legal/pai” de preenchimento facultativo.
E quais serão as providências a serem adotadas pelo Ministério da Saúde?
(i) determinar que o Ministério da Saúde proceda a todas as alterações necessárias nos sistemas de informação do SUS, em especial para que marcações de consultas e de exames de todas as especialidades médicas sejam realizadas independentemente do registro do sexo biológico, evitando procedimentos burocráticos que possam causar constrangimento ou dificuldade de acesso às pessoas transexuais;
(ii) esclarecer que as alterações anteriormente mencionadas se referem a todos os sistemas informacionais do SUS, não se restringindo ao agendamento de consultas e exames, de modo a propiciar à população trans o acesso pleno, em condições de igualdade, às ações e aos serviços de saúde do SUS;
(iii) determinar que o Ministério da Saúde proceda à atualização do layout da Declaração de Nascido Vivo – DNV, para que dela faça constar a categoria “parturiente/mãe” de preenchimento obrigatório e, no lugar do campo “responsável legal”, passe a constar o campo “responsável legal/pai” de preenchimento facultativo, nos termos da Lei nº 12.662/2012;
(iv) ordenar ao Ministério da Saúde que informe às secretarias estaduais e municipais de saúde, bem como a todos os demais órgãos ou instituições que integram o SUS, os ajustes operados nos sistemas informacionais do SUS, bem como preste o suporte que se fizer necessário para a migração ou adaptação dos sistemas locais, tendo em vista a estrutura hierarquizada e unificada do SUS nos planos nacional (União), regional (estados) e local (municípios).
Por fim, destacamos que o Supremo Tribunal Federal possui outros entendimentos importantíssimos envolvendo transexuais, conforme destacamos alguns casos abaixo:
No “leading Case” julgado no RE n. 670422, destacamos o Tema 761 – Possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo.
Por seu turno, destacamos outro julgado paradigmático:
ADO n. 26 - Publicação: 06/10/2020 - Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei no 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2o, I, “in fine”).
O RE n. 845779 foi interposto por uma mulher transexual, que teria sido constrangida por um funcionário de um shopping em Florianópolis ao tentar utilizar o banheiro feminino. O recurso envolvia o direito de pessoas transexuais serem tratadas socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero. Porém, a Suprema Corte não analisou o mérito, conforme ementa destacada:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TEMA 778. USO DE BANHEIRO PÚBLICO POR TRANSGÊNERO. REDISCUSSÃO DE MATÉRIA FÁTICA. AUSÊNCIA DE ANÁLISE PELO JUÍZO A QUO DE VIOLAÇÃO CONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DOS DESENHOS CONSTITUCIONAIS. QUESTÃO DE ORDEM PARA CANCELAMENTO DA REPERCUSSÃO GERAL. ART. 323-B DO RISTF. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.
Sem dúvidas, estamos diante de um grupo vulnerável que merece atenção especial do Estado.
Nos termos da 100 Regras de Brasília, “se consideran en condición de vulnerabilidad aquellas personas quienes, por razón de su edad, género, orientación sexual e identidad de género, estado físico o mental, o por circunstancias sociales, económicas, étnicas y/o culturales, o relacionadas con sus creencias y/o prácticas religiosas, o la ausencia de estas encuentran especiales dificultades para ejercitar con plenitud ante el sistema de justicia los derechos reconocidos por el ordenamento jurídico”.
Porém, de forma genérica, a Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe, no 1º, 1, que “Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. (Grifos nosso)
Assim, como visto, o gênero, a orientação sexual e a identidade de gênero podem constituir fatores de vulnerabilidade. Nesse ponto, destacamos aos alunos importante opinião consultiva a se destacar no momento da prova:
Opinião Consultiva n. 24 – Identidade de gênero, igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo2: a presente opinião consultiva trata acerca da identidade de gênero, igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo, obrigações estatais em relação à mudança de nome, à identidade de gênero e aos direitos derivados de um vínculo entre casais do mesmo sexo (interpretação e alcance dos artigos 1.1, 3º, 7º, 11.2, 13, 17, 18 e 24, em relação ao artigo 1º da convenção americana sobre direitos humanos). O parecer da Corte expressa que a mudança de nome, a adequação dos registros públicos e dos documentos de identidade para que estes sejam conforme a identidade de gênero autopercebida constitui um direito protegido pelos artigos 3°, 7.1, 11.2 e 18 da Convenção Americana, devendo os Estados reconhecer, regular e estabelecer os procedimentos adequados para tais fins. O Estado deve garantir um procedimento focado na adequação integral da identidade de gênero, no consentimento livre e informado, sem exigir certificações médicas ou psicológicas, deve ser confidencial e, na medida do possível, gratuito. Além disso, o Estado deve reconhecer e garantir a todos os direitos que se derivam de um vínculo familiar entre pessoas do mesmo sexo, garantindo o acesso a todas as figuras já existentes nos ordenamentos jurídicos internos, incluindo o direito ao matrimônio, para assegurar a proteção de todos os direitos das famílias formadas por casais do mesmo sexo, sem discriminação.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275, nos seguintes termos:
“O Tribunal, por maioria, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio e, em menor extensão, os Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. Impedido o Ministro Dias Toffoli. Redator para o acórdão o Ministro Edson Fachin. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 1º.3.2018” (grifo nosso).
Apenas de maneira exemplificativa, a ARPEN-SP expediu a Nota Técnica de 26/03/2018, orientando que todos os oficiais de registro civil de pessoas naturais procedam à retificação extrajudicial de assento, em cumprimento à decisão de nossa Corte Constitucional. Cita-se:
“1. O procedimento de alteração de sexo e prenome das pessoas transgêneros no registro de nascimento será realizado diretamente perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais, independentemente de qualquer instrumento público ou particular, devendo o Oficial submetê-lo à apreciação do Juiz Corregedor Permanente para decisão.
2. São legitimados para requerer o procedimento de alteração de sexo e prenome os próprios registrados, desde que possam manifestar a sua vontade e sejam capazes nos termos do Código Civil Brasileiro.
3. Além dos documentos de identificação pessoal, o interessado poderá apresentar outros que julgue conveniente ao convencimento do Juiz Corregedor Permanente.
4. O procedimento tem natureza sigilosa, não podendo constar das respectivas certidões dos assentos qualquer informação a seu respeito, salvo nos casos de solicitações feitas pelo próprio registrado ou requisições judiciais.
5. O oficial de registro deverá orientar o interessado que, por ser irrevogável, a alteração de sexo e prenome diretamente no registro civil será feita uma única vez, não se admitindo sua desconstituição ou nova alteração, salvo por decisão judicial.
6. Apenas será admitido, por meio deste procedimento, a alteração do prenome do interessado, não se admitindo a alteração dos sobrenomes.
7. O Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais fará constar no assento, se não houver, os números dos documentos de identidade RG (Registro Geral), CPF (Cadastro das Pessoas Físicas da Receita Federal) e, se houver, passaporte e ICN (Identificação Civil Nacional).
8. Suspeitando de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação, o registrador recusará a alteração do sexo e prenome de forma fundamentada e encaminhará o pedido ao juiz competente nos termos da legislação local” (grifo nosso).
Seguindo essa linha de raciocínio, atores do sistema de justiça, tal como o Ministério Público e a Defensoria Pública, poderão atuar de forma judicial e extrajudicial para concretizar tais direitos, inclusive por meio da denominada educação em direitos. Assim, almeja-se concretizar o direito ao nome social, à identidade de gênero, a união homoafetiva, casamento entre pessoas do mesmo sexo e, ao fim, a busca pela felicidade. Trata-se de um incremento da cidadania e dos direitos humanos.
- Disponível em <https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/declaracao-de-nascimento-deve-ter-termos-inclusivos-para-contemplar-pessoas-trans-decide-stf/>. Acesso em 30 de outubro de 2024. ↩︎
- Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf>. Acesso em 07 de abril de 2019. ↩︎
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