Dano moral: Globo é condenada por reprisar frango de goleiro
Foto: Reprodução/SporTV

Dano moral: Globo é condenada por reprisar frango de goleiro

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

Dano moral
A justiça paulista condenou a Rede Globo a indenizar, em R$ 30 mil, o ex-goleiro Alexandre Rosa Paschoalato, conhecido como Alexandre Cajuru, por ter reprisado, de forma reiterada, um "frango" cometido pelo jogador durante uma partida.

O goleiro defendia o time do CSA, de Maceió/AL, no Campeonato Brasileiro da série B. Na ocasião, ele falhou em um lance que resultou em gol para a Ponte Preta.

O canal fechado SportTV, pertencente ao Grupo Globo, criou o quadro “Top 3 Vaciladas no Brasileirão 2020“. Ali, passou a exibir repetidamente a falha do jogador.

A exibição do frango ocorreu de forma excessiva e abusiva: foram 4.800 transmissões do lance entre 2020 e 2021.

Segundo o goleiro, a repercussão negativa acabou prejudicando sua carreira, dificultando a renovação de contratos com clubes da primeira divisão.

O julgamento da ação ocorreu inicialmente pela 8ª vara Cível de Ribeirão Preto/SP, que reconheceu a revelia da Globo. Isso porque a empresa, apesar de citada, não apresentou contestação no prazo legal. A sentença fixou a indenização em R$ 30 mil.

Tanto o goleiro quanto a Globo recorreram da decisão: a Globo pediu a improcedência da ação ou, subsidiariamente, a redução do valor da indenização; já o goleiro pleiteou o aumento do valor para R$ 150 mil, em razão da gravidade dos danos sofridos e do poder econômico da ré.

A 6ª câmara de Direito Privado do TJ/SP manteve condenação da Rede Globo ao pagamento de indenização no valor de R$ 30 mil por dano moral.

Análise jurídica

Liberdade de expressão

O episódio envolveu um conflito entre dois direitos garantidos constitucionalmente: a liberdade de expressão e de imprensa (art. 5º, IV da CF) e o direito à proteção da honra e da imagem (art. 5º, V e X da CF).

CF/88
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
...
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Considera-se que a liberdade de expressão é um direito fundamental ligado à dignidade da pessoa humana, e garantia da cidadania e de um regime democrático integral. Mais que isso, reputa-se mesmo um dos direitos mais fundamentais dentre todos os direitos fundamentais.

A finalidade da liberdade de expressão é permitir a construção da democracia, que pressupõe a possibilidade de debate de ideias diferentes.

Como decorrência da liberdade de opinião (que, por se considerar a liberdade primária, em razão de consistir em um ponto de partida das outras), há a liberdade de expressão, da qual é um alargamento à liberdade de imprensa.

Embora os direitos de livre manifestação do pensamento e de expressão sejam direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, nenhum direito é absoluto.

Discurso de ódio

Pode-se restringir a liberdade de expressão quando se utiliza o discurso para praticar ou incitar conduta criminosa, com o único objetivo de ofender, ou mesmo para difundir o ódio contra grupos vulneráveis.

Nessas circunstâncias, é dever do Poder Judiciário, uma vez provocado, realizar a ponderação de valores no caso concreto. Assim, avalia-se se o discurso ou a reportagem foi abusiva na forma e/ou no conteúdo, e se deve prevalecer a liberdade de expressão ou a proteção aos direitos dos que alegam terem sido vítimas da ofensa.

O então ministro do Supremo, Carlos Velloso, foi preciso em seu voto:

“É induvidoso que a Constituição brasileira consagra a liberdade de expressão, que se consubstancia nas liberdades de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e a liberdade de imprensa. Não é menos certo, entretanto, que não há direitos absolutos. Ora, não pode a liberdade de expressão acobertar manifestações preconceituosas e que incitam a prática de atos de hostilidade contra grupos humanos, manifestações racistas, considerado o racismo nos termos anteriormente expostos, manifestações atentatórias à dignidade humana e a direitos fundamentais consagrados na Constituição (...) A liberdade de expressão não pode sobrepor-se à dignidade da pessoa humana, fundamento da República e do Estado Democrático de Direito que adotamos – C.F., art. 1º, III – ainda mais quando essa liberdade de expressão apresenta-se distorcida e desvirtuada” (HC 82.424)

O código civil trata do abuso de direito como um ato ilícito, nos termos de seu art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

O ordenamento jurídico brasileiro não permite que o hate speech (discurso de ódio) seja acobertado pelo manto da liberdade de expressão, que encontra restrições voltadas ao combate do preconceito e da intolerância.

Discurso de ódio (hate speech): consiste na manifestação de valores discriminatórios, que fere a igualdade, ou de incitamento à discriminação, violência ou a outros atos de violação de direitos de outrem.

Importante pontuar que não é pressuposto para a caracterização do discurso de ódio a utilização de adjetivos pejorativos ou a propagação de ordens explícitas de atos violentos contra os integrantes do grupo que se pretende discriminar.

O discurso de ódio pode ocorrer de forma velada, subliminar, dissimulada, irônica, sutil, e talvez nessa modalidade seja até mais perigoso, porque não fica necessariamente explícito, e revela-se aparentemente mais aceitável socialmente.

Indenização

A Constituição Federal em seu art. 5º, X, estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação“. Nesse ponto, o Código Civil a suplementa, em seus arts. 186 e 187, que dispõem sobre atos ilícitos, e 927, caput, que dispõe sobre a obrigação de indenizar quando do cometimento de ato ilícito, se deste resultar dano.

Nesse contexto, o art. 12 da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67), em relação ao Código Civil, enfatiza a obrigação de reparar, imposta àqueles que, através dos meios de comunicação, venham a causar danos de qualquer natureza a outrem, in verbis:

“Art. 12. Aqueles que, através dos meios de informação e divulgação, praticarem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação ficarão sujeitos às penas desta Lei e responderão pelos prejuízos que causarem.”

Portanto, do mesmo modo que é assegurada a liberdade de expressão e de imprensa, é garantido àqueles que sofrerem danos de ordem moral que venham a ser atingidos na sua intimidade e na sua imagem em decorrência da atuação da imprensa, ou ainda de qualquer pessoa que se valha dos meios de comunicação, o direito de ressarcimento.

Conclusão

Deve-se refrear a livre manifestação da imprensa através de algumas condicionantes impostas pelos direitos da personalidade, sob pena de configuração de abuso.

Restou comprovado que a Rede Globo extrapolou no seu direito de informação, expressão e imprensa. Além disso, a liberdade de imprensa não se sobrepõe à honra e a imagem das pessoas.

Muito embora se assegure constitucionalmente o direito à divulgação de notícias jornalísticas, independentemente de censura, ainda que a notícia possa prejudicar a imagem da pessoa envolvida, o órgão de imprensa responde por dano moral quando diante da exposição, possa acarretar ofensa à dignidade da pessoa humana.

Ótimo tema para provas de direito constitucional e civil!


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