Crianças trancadas e mortas em incêndio: análise jurídica do caso

Crianças trancadas e mortas em incêndio: análise jurídica do caso

Introdução

Nos últimos dias, noticiou-se um trágico acidente ocorrido no Piauí, onde duas crianças morreram em um incêndio enquanto estavam trancadas em casa. O caso levanta importantes questões jurídicas que certamente serão identificadas durante o desenrolar das investigações.

Este artigo analisa as possíveis responsabilidades criminais decorrentes deste evento, com base no Código Penal brasileiro e na jurisprudência pátria.

Isto é, eventual responsabilização deve ocorrer caso se comprove a negligência dos responsáveis e nas medidas de prevenção e segurança que seriam possíveis tomar para evitar tal tragédia, seja para a tipificação do crime de abandono de incapaz, seja para eventual responsabilidade pelo delito de homicídio culposo.

Contexto factual

No caso em questão, as duas crianças, cujas identidades não foram divulgadas por respeito à privacidade, estavam trancadas em casa quando o incêndio começou. As circunstâncias exatas que levaram ao incêndio ainda estão sob investigação, mas a situação de vulnerabilidade das crianças e a ausência de supervisão adequada são fatores centrais na análise jurídica.

Análise jurídica – possíveis implicações penais, caso constatada violação do dever de cuidado

1. Crime de Abandono de Incapaz qualificado (Art. 133, §2º, do Código Penal)

O artigo 133 do Código Penal Brasileiro tipifica o crime de abandono de incapaz da seguinte maneira. A previsão da qualificadora pelo resultado morte vem em seu §2º. Vejamos:

Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena – detenção, de seis meses a três anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos.

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No caso em análise, a responsabilidade dos pais ou responsáveis pelas crianças precisa de um exame cuidadoso. Não basta, no caso da notícia, os responsáveis terem deixado as crianças sozinhas em casa.

Para a caracterização do crime de abandono de incapaz deve estar verificada a conduta consistente no dolo de perigo, ou seja, na deliberada intenção de abandonar, gerando perigo à incolumidade das crianças.

Neste sentido, vejamos:

APELAÇÃO CRIMINAL – ABANDONO DE INCAPAZ – DOLO COMPROVADO – PERIGO CONCRETO PARA A INCOLUMIDADE DOS ABANDONADOS – INEXIGÊNCIA DE FIM ESPECIAL DE AGIR – MERA INTENÇÃO DE ABANDONAR – CONDENAÇÃO MANTIDA. – Caracteriza o delito de abandono de incapaz a conduta de abandonar pessoa que está sob o seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono – Ao abandonar menores dentro de uma residência, sem a companhia de um adulto capaz, o agente aceita o risco (dolo eventual) do perigo concreto para a incolumidade dos abandonados, sendo indiferente o tempo em que se ausentar do local – Para a configuração do delito do art. 133 do CP, não há exigência de qualquer especial fim de agir – basta a mera intenção de abandonar, ainda que temporariamente, pessoa que está sob seu cuidado ou proteção. (TJ-MG – APR: 10390070182923001 Machado, Relator: Alberto Deodato Neto, Data de Julgamento: 09/03/2010, Câmaras Criminais Isoladas / 1ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 07/05/2010)

Sem tal elemento subjetivo, o crime poderá ser de homicídio culposo, conforme explicação abaixo.

2. Homicídio Culposo (Art. 121, §3º do Código Penal)

Conforme já mencionado, inexistente o dolo de abandono, mas presente a violação ao dever objetivo de cuidado dos responsáveis, poderá haver a tipificação pelo crime de homicídio culposo.

O artigo 121, §3º, do Código Penal define o homicídio culposo como aquele praticado sem a intenção de matar, resultante de imprudência, negligência ou imperícia:

Art. 121, §3º - Se o homicídio é culposo: Pena - detenção, de um a três anos.

Nesse sentido, se a investigação concluir que os responsáveis agiram com negligência ao deixar as crianças sozinhas e trancadas em casa, resultando em suas mortes, eles poderão ser indiciados por homicídio culposo.

Vale destacar que este crime somente será imputado caso tenha havido a omissão injustificada da genitora ou responsável (não há elementos suficientes na notícia aptos a indicar se as crianças estavam somente sob os cuidados da mãe, de ambos os genitores, ou de outros responsáveis), desacompanhada do dolo de perigo decorrente do abandono.

A análise da conduta da genitora e as circunstâncias que levaram ao incêndio são cruciais para determinar se houve negligência suficiente para configurar este crime.

Ainda, é possível conceder o perdão judicial caso verificado intenso sofrimento dos responsáveis, nos termos do que prevê o §5º, do art. 121, do Código Penal. Vejamos:

§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

3. Responsabilidade Civil

Além das responsabilidades criminais, pode-se obrigar os responsáveis a reparar os danos causados pelo evento trágico. Assim, a responsabilidade civil busca compensar os danos materiais e morais sofridos pela perda das crianças. O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 186, estabelece que:

Art. 186 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Os familiares das vítimas podem buscar reparação financeira pelos danos sofridos, que incluem despesas funerárias, além de danos morais pelo sofrimento causado pela perda das crianças.

Conclusão

A tragédia no Piauí, onde duas crianças morreram em um incêndio enquanto estavam trancadas em casa, destaca a importância da responsabilidade dos pais e responsáveis no cuidado e proteção dos menores.

A análise jurídica sugere que pode haver fundamento para indiciar os responsáveis pelos crimes de abandono de incapaz e homicídio culposo, além da responsabilidade civil pelos danos causados.

A aplicação da lei deve ser rigorosa para garantir que se investiguem devidamente tais incidentes e que se responsabilizem os responsáveis, visando prevenir futuras tragédias semelhantes. A sociedade e o sistema jurídico têm o dever de proteger os mais vulneráveis, e este caso serve como um doloroso lembrete da importância dessas responsabilidades.


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