* Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes. Defensor Público do estado de São Paulo. Professor de Direito Constitucional do Estratégia Carreiras Jurídicas.
Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal fixou duas teses no ARE n. 1553243 sobre heteroidentificação1:
1. O Poder Judiciário pode controlar o ato administrativo de heteroidentificação de candidatos que concorrem às vagas reservadas a pessoas pretas e pardas em concurso público, para garantia de contraditório e ampla defesa;
2. É fática e pressupõe a análise de cláusulas do edital do concurso a controvérsia sobre a adequação de critérios e de fundamentos do ato de exclusão de candidato por comissão de heteroidentificação.
Sistema de Quotas
Como se sabe, o STF, há bastante tempo, já validou o sistema de quotas raciais em nosso país. Sobre o tema, imprescindível que o concurseiro tenha conhecimento de dois julgados da nossa Suprema Corte, sendo que o primeiro envolve cotas em universidades públicas e o segundo envolve cotas em concursos públicos.
STF, ADPF nº 186: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I - Não contraria - ao contrário, prestigia - o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
No âmbito federal, a Lei nº 12.990 de 2014 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Em julgamento realizado em 08/06/2017, pelo Supremo Tribunal Federal, restou decidido, na ADC nº 41/DF, questionando-se a constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014, que “é constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.
Uma conclusão muito oportuna para os concursos de carreiras jurídicas é apresentada por Marcelo Novelino (NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2011, página 439):
“Em síntese conclusiva, as ações afirmativas representam uma evolução do princípio da igualdade em seu aspecto substancial. São medidas tomadas com o intuito de implementar um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: a redução das desigualdades sociais. (...) Do ponto de vista das políticas públicas, ainda que o sistema de cotas (reserva de vagas) não seja a solução mais justa e adequada para resolver o problema de forma definitiva, não se pode fechar os olhos para a realidade atual daqueles que não tiveram igualdade real de condições e oportunidades para alcançar determinadas posições na sociedade”.
Procedimento de Heteroidentificação
O procedimento de heteroidentificação é uma etapa/fase de verificação que irá complementar a autodeclaração de candidatos que se inscrevem em concursos públicos concorrendo às vagas reservadas para pessoas negras (pretas e pardas, por exemplo). Trata-se de um controle da autodeclaração para evitar fraudes nos certames.

Assim, a comissão de heteroidentificação, que possui o objetivo de garantir lisura e efetividade nas ações afirmativas, irá buscar confirmar, por meio de uma avaliação, se as características físicas (fenótipo) do candidato correspondem à autodeclaração racial feita no momento da inscrição.
Durante esse procedimento, algumas garantias devem ser respeitadas, a exemplo da dignidade da pessoa humana, da publicidade, bem como a observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Caso analisado pelo STF
A Suprema Corte se debruçou sobre um caso envolvendo uma candidata excluída de concorrer às vagas reservadas a pessoas pretas e pardas em um concurso público para técnico judiciário.
Enquanto o estado do Ceará argumentava que o Judiciário não poderia substituir a banca examinadora, o Tribunal de Justiça do Ceará entendeu que a decisão da banca deve ser baseada em critérios objetivos previstos no edital do concurso e que a candidata precisa saber o motivo de sua exclusão da concorrência no sistema de cotas. Nesse sentido, o caso foi levado para análise do Supremo Tribunal Federal, inclusive com repercussão geral conhecida.
O ministro relator destacou que a análise pelo Poder Judiciário sobre o cumprimento das regras de editais de concursos públicos não viola a separação dos Poderes. Assim, as bancas de heteroidentificação são válidas, mas desde que sejam respeitados os direitos ao contraditório e à ampla defesa. Por isso, o Judiciário poderia analisar eventuais ilegalidades ou inconstitucionalidades em atos de bancas de concursos.
Conselho Nacional de Justiça
Um excelente parâmetro de estudos aos alunos envolve a Resolução nº 541 de 18/12/2023, a qual disciplina a instituição das comissões de heteroidentificação e o respectivo procedimento nos concursos públicos realizados no âmbito do Poder Judiciário.
De acordo com a resolução, o procedimento de heteroidentificação refere-se a identificação por terceiros da condição racial autodeclarada (art. 5º), sendo certo que esse procedimento será realizado por comissão criada especificamente para este fim (art. 6º).
Importante destacar que a própria resolução enumera princípios e diretrizes a serem adotadas na heteroidentificação. Vejamos:
I – respeito à dignidade da pessoa humana;
II – observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal;
III – garantia de padronização e de igualdade de tratamento entre candidatos(as) submetidos(as) ao procedimento de heteroidentificação promovido no mesmo concurso público;
IV – garantia da publicidade e do controle social do procedimento de heteroidentificação, resguardadas as hipóteses de sigilo previstas em lei;
V – atendimento ao dever de autotutela da legalidade pela administração pública;
VI – garantia da efetividade da ação afirmativa de reserva de vagas a candidatos(as) negros(as) nos concursos públicos de ingresso no serviço público do Poder Judiciário.
Assim, nota-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal observa as diretrizes constitucionais, bem como a resolução do CNJ sobre o tema, aplicando-se a inafastabilidade da análise jurisdicional, notadamente quando não observados os princípios dispostos na resolução.
- Disponível em https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/decisao-de-banca-de-heteroidentificacao-de-cota-racial-pode-ser-discutida-na-justica-diz-stf/. Acesso em 17 de setembro de 2025. ↩︎
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