* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
A Prefeitura de Gaúcha do Norte, que fica no Estado do Mato Grosso, assinou um contrato com a empresa Talismã Administradora de Shows e Editora Musical Ltda. para a apresentação do cantor Leonardo no município de 8.600 habitantes.
O show aconteceu em 2024 a um custo de R$750 mil aos cofres públicos municipais.

A justiça do Mato Grosso anulou o contrato sob a justificativa de superfaturamento, e determinou a devolução ao Município de R$300 mil.
A média de preço de show já contratado por entidades públicas em períodos próximos da data do evento é de R$ 432 mil, conforme um levantamento feito pelo Ministério Público Estadual.
O Ministério Público afirmou que a prefeitura não apresentou justificativas adequadas para o valor pago, descumprindo então as exigências legais para inexigibilidade de licitação.
Além da empresa, o ex-prefeito Volney Rodrigues Goulart também é alvo da ação.
A Prefeitura de Gaúcha do Norte informou que a contratação foi feita pela gestão anterior, não tendo qualquer vínculo com a atual administração.
Entre 2022 e 2023, Leonardo realizou quatro apresentações no interior do estado do Mato Grosso. Os cachês variavam entre R$ 380 mil e R$ 550 mil.
Antes mesmo da realização do show, o Ministério Público do Mato Grosso já havia notificado a prefeitura e conseguiu na Justiça uma decisão liminar, com tutela de urgência, para suspender a apresentação. No entanto, o recurso apresentado foi provido no Tribunal de Justiça para garantir a realização do espetáculo.
À época, o Município defendeu a validade do contrato. Ele argumentou que o preço contratado teria sido devidamente justificado com base em notas fiscais referentes a outras apresentações do artista.
Argumentos
ARGUMENTOS DA PREFEITURA PARA A MANUTENÇÃO DO CONTRATO |
Valor firmado no contrato estava dentro dos preços praticados no mercado; |
Custos logísticos altos devido às más condições das estradas usadas pelo cantor para chegar ao município; |
Era necessário o deslocamento de dois jatos, uma carreta e um ônibus para transportar o artista, os instrumentos e a equipe de apoio até Gaúcha do Norte. |
No entanto, o Ministério Público não se convenceu dos argumentos, e prosseguiu com a ação.
Constou no processo a incompatibilidade de um município com pouco mais de 8 mil habitantes e com carências estruturais graves anuncie, ao mesmo tempo, a contratação de um artista com cachê considerado desproporcional diante das necessidades prioritárias e da situação financeira da cidade.
ARGUMENTOS DO MP PARA A ANULAÇÃO DO CONTRATO |
Afronta ao princípio da moralidade. |
Afronta ao princípio da legalidade. |
Afronta ao princípio da eficiência. |
Afronta ao princípio da proporcionalidade. |
Afronta ao princípio da razoabilidade. |
O parquet foi incisivo:
“Devido às necessidades básicas da população, que enfrenta uma carência crônica na prestação de serviços básicos, a festividade deve se adequar às idiossincrasias econômicas da cidade, sendo certo que a realização do show contestado, que representam um custo de R$ 750 mil afronta os princípios da legalidade, moralidade, eficiência, proporcionalidade e razoabilidade (art. 37 da CRFB)”
Análise jurídica
A grande questão digna de reflexão é saber se é legal que um pequeno Município, que se encontra em grave situação financeira, com problemas na saúde, educação, segurança, habitação, pague cachês milionários a artistas para a realização de shows.
Ainda mais quando o valor contratado está bem acima da média do mercado (superfaturado).

Princípios
O art. 37, da Constituição Federal, traz uma série de princípios que devem ser observados pela Administração Pública. Exemplos deles são a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
O princípio da moralidade administrativa exige que os agentes públicos atuem de maneira ética, proba, com boa-fé, sob pena de afronta à Constituição e cometimento de improbidade administrativa.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, de forma brilhante, leciona:
“Sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do Administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa”.
Nesse sentido, o princípio da moralidade administrativa pode ser entendido sob três aspectos distintos1:
a) Dever de atuação ética (princípio da probidade): o agente público deve ter um comportamento ético, transparente e honesto perante o administrado. Assim, o agente público não pode sonegar, violar nem prestar informações incompletas com o objetivo de enganar os administrados. Não pode um agente se utilizar do conhecimento limitado que as pessoas têm sobre a administração para obter benefícios pessoais ou prejudicar indevidamente o administrado;
b) Concretização dos valores consagrados na lei: o agente público não deve limitar-se à aplicação da lei, mas buscar alcançar os valores por ela consagrados. Assim, quando a Constituição institui o concurso público para possibilitar a isonomia na busca por um cargo público, o agente público que preparar um concurso dentro desses ditames (proporcionar a isonomia) estará também cumprindo o princípio da moralidade;
c) Observância dos costumes administrativos: a validade da conduta administrativa se vincula à observância dos costumes administrativos, ou seja, às regras que surgem informalmente no quotidiano administrativo a partir de determinado condutas da Administração. Assim, desde que não infrinja alguma lei, as práticas administrativas realizadas reiteradamente, devem vincular a Administração, uma vez que causam no administrado um aspecto de legalidade.
Portanto, o pagamento de cachês milionários a artistas consagrados, por parte de Municípios pequenos, pobres, e em grave situação financeira, não parece ser a medida mais acertada, podendo ser objeto de ação judicial para o reconhecimento de sua nulidade.
A anulação é uma hipótese de extinção do contrato quando há irregularidade insanável no processo licitatório ou na formalização do contrato, mesmo que identificada após o início da execução do objeto.
Em regra, a nulidade terá efeitos retroativos, desconstituindo os já produzidos e impedindo a produção de novos efeitos jurídicos (eficácia ex tunc).
No entanto, quando não for possível reverter os efeitos da contratação, a nulidade terá eficácia ex nunc, cabendo indenização por perdas e danos aos comprovadamente prejudicados, bem como a apuração de responsabilidade e aplicação das penalidades cabíveis (inteligência do art. 148, da Lei nº 14.133/2021 – Lei de Licitações e Contratos).
Ótimo tema para provas de direito administrativo.
- PATRIOTA, Caio César Soares Ribeiro Borges. O princípio da moralidade administrativa. JusBrasil. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-principio-da-moralidade-administrativa/433140195>. ↩︎
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