Contrabando de cigarros eletrônicos: por que o Tema 1143 do STJ não se aplica?

Contrabando de cigarros eletrônicos: por que o Tema 1143 do STJ não se aplica?

Prof. Gustavo Cordeiro

O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu importante distinção entre o contrabando de cigarros convencionais e eletrônicos, decidindo que o limite de 1.000 maços fixado no Tema Repetitivo 1143 não se aplica aos dispositivos eletrônicos para fumar. A decisão no AgRg no REsp 2.184.785-PR, relatada pelo Ministro Ribeiro Dantas, esclarece questão fundamental para a aplicação do princípio da insignificância em crimes aduaneiros e demonstra como a evolução tecnológica impõe constante revisão dos paradigmas jurisprudenciais.

O contexto: Tema 1143 e o contrabando de cigarros convencionais

Para compreender a decisão sobre cigarros eletrônicos, é imprescindível analisar o precedente que se estabeleceu no Tema 1143. Em setembro de 2023, a Terceira Seção do STJ, nos REsp 1.971.993-SP e REsp 1.977.652-SP, fixou tese de que “o princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta.”

A construção dessa tese fundamentou-se em robusta análise estatística. Os dados apresentados ao STJ demonstraram que, embora as apreensões de até 1.000 maços correspondessem a aproximadamente 70% das ocorrências, representavam menos de 5% do volume total de cigarros apreendidos anualmente. Essa disparidade evidenciou que a persecução penal dos pequenos contrabandistas consumia recursos públicos desproporcionalmente, sem impacto significativo na proteção dos bens jurídicos tutelados pelo tipo penal.

A ratio decidendi do Tema 1143 ancora-se em três pilares fundamentais. Primeiro, a política criminal pragmática, reconhecendo a necessidade de concentrar esforços estatais no combate ao contrabando de grande escala, verdadeiramente lesivo à economia e saúde pública. Segundo, a proporcionalidade entre a resposta penal e a lesividade da conduta, evitando a criminalização de comportamentos de mínima ofensividade. Terceiro, a eficiência do sistema de justiça criminal, direcionando recursos limitados para casos de maior relevância social.

O caso paradigmático dos cigarros eletrônicos

Paulo, passageiro de ônibus de turismo, foi abordado por policiais rodoviários federais na fronteira entre Brasil e Paraguai portando 80 unidades de cigarros eletrônicos sem documentação comprobatória de importação regular. A Receita Federal avaliou os produtos em R$ 6.000,00, com tributos iludidos calculados em R$ 1.500,00 entre Imposto de Importação e IPI.

O juiz federal de primeiro grau rejeitou a denúncia do Ministério Público Federal, fundamentando sua decisão em dois argumentos principais. Primeiro, aplicou por analogia o entendimento do Tema 1143, considerando que 80 unidades de cigarros eletrônicos estariam aquém do limite de 1.000 maços estabelecido para cigarros convencionais. Segundo, invocou o parâmetro de R$ 20.000,00 previsto no artigo 20 da Lei 10.522/2002 para ajuizamento de execuções fiscais, argumentando que o valor dos tributos iludidos tornaria a conduta penalmente insignificante.

O Ministério Público Federal interpôs recurso em sentido estrito, sustentando a inaplicabilidade do Tema 1143 aos cigarros eletrônicos. O órgão acusador argumentou que a natureza reutilizável desses dispositivos, aliada à ausência de estudos conclusivos sobre seus efeitos à saúde e à proibição absoluta de importação pela ANVISA, impediria a extensão analógica do precedente firmado para cigarros convencionais.

A natureza jurídica distinta: consumo versus reutilização

A decisão do STJ fundamentou-se primordialmente na diferença ontológica entre cigarros convencionais e eletrônicos. Enquanto o cigarro tradicional possui natureza consumível, sendo destruído no ato de fumar, o dispositivo eletrônico caracteriza-se pela durabilidade e reutilização indefinida, necessitando apenas da reposição periódica da essência vaporizada.

Essa distinção não é meramente técnica, mas possui profundas implicações jurídicas. A capacidade de reutilização multiplica exponencialmente o potencial lesivo à saúde pública.

cigarro eletrônico
Como observou o relator, "um único dispositivo pode ser compartilhado por múltiplos usuários durante período indeterminado, transformando cada unidade apreendida em vetor potencial de danos muito superiores aos causados por maços de cigarros convencionais."

A análise comparativa revela que mil maços de cigarros convencionais, contendo aproximadamente 20.000 unidades, serão consumidos e destruídos em período relativamente curto. Em contrapartida, 80 dispositivos eletrônicos podem proporcionar centenas de milhares de tragadas ao longo de meses ou anos, atingindo número indeterminado de usuários. Essa desproporção temporal e quantitativa inviabiliza a aplicação mecânica do parâmetro numérico estabelecido no Tema 1143.

Proibição absoluta versus proibição relativa: o marco regulatório sanitário

Elemento determinante para a decisão do STJ foi a natureza jurídica da proibição incidente sobre cada produto. Os cigarros convencionais submetem-se a regime de proibição relativa. Assim, eles podem ser legalmente importados mediante cumprimento de requisitos administrativos e tributários estabelecidos pela legislação aduaneira e sanitária. A ilicitude surge apenas quando a importação ocorre à margem desses requisitos.

Os cigarros eletrônicos, diversamente, estão sujeitos a proibição absoluta determinada pela Resolução RDC nº 46/2009 da ANVISA. A agência reguladora fundamentou a vedação total na inexistência de dados científicos comprobatórios da segurança, eficácia e qualidade desses produtos. Estudos posteriores à edição da norma têm corroborado a prudência regulatória, demonstrando associação entre uso de cigarros eletrônicos e lesões pulmonares graves, incluindo a síndrome EVALI (E-cigarette or Vaping product use-Associated Lung Injury).

A distinção entre proibição absoluta e relativa transcende o aspecto administrativo, refletindo-se na valoração da conduta típica. O contrabando de produto absolutamente proibido revela maior desvalor da ação, pois o agente não apenas frustra a arrecadação tributária, mas introduz no território nacional mercadoria cuja circulação o ordenamento jurídico repudia integralmente por razões de saúde pública.

A irrelevância do parâmetro fiscal: contrabando versus descaminho

O STJ aproveitou o ensejo para esclarecer distinção fundamental entre os crimes de contrabando e descaminho, frequentemente confundidos na prática forense. O descaminho, tipificado no artigo 334 do Código Penal, caracteriza-se pela importação de mercadoria permitida sem recolhimento dos tributos devidos. O bem jurídico tutelado é primordialmente a arrecadação tributária, justificando a aplicação do parâmetro de R$ 20.000,00 como critério de insignificância.

O contrabando, previsto no artigo 334-A, tutela multiplicidade de bens jurídicos que transcendem o interesse arrecadatório. A saúde pública, a segurança nacional, a moralidade administrativa e a ordem econômica compõem o complexo de valores protegidos pela norma incriminadora. Essa pluralidade de bens jurídicos torna inadequada a utilização de critério exclusivamente fiscal para aferição da insignificância.

Como enfatizou o tribunal, “a lesividade do contrabando não se mede pelos tributos iludidos, mas pelo potencial de dano aos múltiplos interesses tutelados pela norma penal.” A importação de medicamentos falsificados, armas, drogas ou produtos sanitariamente proibidos pode gerar tributos irrisórios, sem que isso diminua a gravidade da conduta ou autorize a aplicação do princípio da insignificância.

A reiteração delitiva como óbice intransponível

A decisão reafirmou orientação consolidada de que a habitualidade delitiva constitui impedimento absoluto à aplicação do princípio da insignificância. No caso concreto, a investigação revelou que Paulo possuía outros registros de apreensão por contrabando nos cinco anos anteriores ao fato, caracterizando padrão de comportamento incompatível com a excepcionalidade pressuposta pela bagatela penal.

O STJ tem interpretado o conceito de reiteração de forma ampla, abrangendo não apenas a reincidência tecnicamente considerada, mas também a existência de inquéritos policiais, ações penais em curso, procedimentos administrativos fiscais ou mesmo apreensões anteriores sem consequências penais. Essa interpretação fundamenta-se na compreensão de que o princípio da insignificância destina-se a comportamentos isolados e excepcionais, não a práticas reiteradas que denotam habitualidade criminosa.

A verificação da reiteração deve considerar especificamente condutas da mesma natureza, não bastando antecedentes por crimes diversos. A especialidade da reiteração justifica-se pela necessidade de identificar padrão comportamental específico em relação ao crime em análise, distinguindo o infrator ocasional do contrabandista habitual.

Implicações dogmáticas e político-criminais

A decisão do STJ transcende o caso concreto, estabelecendo importantes diretrizes para aplicação do princípio da insignificância em contexto de inovações tecnológicas. A Corte reconheceu que precedentes jurisprudenciais devem ser interpretados conforme as características específicas de cada situação, vedando-se aplicações mecânicas que desconsiderem peculiaridades fáticas relevantes.

Do ponto de vista dogmático, a decisão reafirma a natureza excepcional do princípio da insignificância, que não pode ser banalizado sob pena de esvaziar a tutela penal de bens jurídicos relevantes. A análise da insignificância deve considerar não apenas aspectos quantitativos, mas principalmente qualitativos relacionados à natureza do bem contrabandeado e seu potencial lesivo.

A perspectiva político-criminal evidencia tensão entre eficiência do sistema penal e proteção de bens jurídicos supraindividuais. Enquanto o Tema 1143 privilegiou a eficiência ao estabelecer critério objetivo para cigarros convencionais, a decisão sobre cigarros eletrônicos prioriza a proteção da saúde pública, demonstrando que a ponderação entre esses valores pode variar conforme as características do objeto material do crime.

Como o tema pode ser cobrado em concursos

A complexidade da matéria oferece múltiplas possibilidades de cobrança em concursos públicos. Seria possível formular uma questão objetiva típica nos seguintes termos:

Considerando o entendimento do STJ sobre a aplicação do princípio da insignificância no crime de contrabando, assinale a alternativa correta:

a) O limite de 1.000 maços estabelecido no Tema 1143 aplica-se indistintamente a cigarros convencionais e eletrônicos

b) A importação de 80 unidades de cigarros eletrônicos permite aplicação do princípio da insignificância por estar abaixo do limite quantitativo

c) O valor dos tributos iludidos inferior a R$ 20.000,00 autoriza a aplicação da insignificância tanto no contrabando quanto no descaminho

d) A natureza reutilizável dos cigarros eletrônicos e sua proibição absoluta pela ANVISA impedem a aplicação do parâmetro estabelecido para cigarros convencionais

A resposta correta seria a alternativa D, exigindo do candidato compreensão das distinções estabelecidas pela jurisprudência.

Para questões dissertativas, especialmente em concursos para Magistratura Federal e Ministério Público Federal, espera-se análise aprofundada dos fundamentos da decisão. O candidato deve demonstrar compreensão da ratio decidendi do Tema 1143, explicar por que essa racionalidade não se aplica aos cigarros eletrônicos, distinguir adequadamente contrabando de descaminho e abordar a questão da reiteração delitiva.

Em peças práticas, como elaboração de denúncia, o candidato deve enfatizar a proibição absoluta estabelecida pela RDC 46/2009, o caráter reutilizável do produto e sua maior potencialidade lesiva, a inaplicabilidade do Tema 1143 e do parâmetro fiscal de R$ 20.000,00, além de investigar e narrar eventual reiteração delitiva que obstaculize a insignificância.

Perspectivas futuras e desafios interpretativos

A decisão do STJ sinaliza tendência jurisprudencial de maior rigor na análise do princípio da insignificância quando envolvidos produtos sujeitos a controle sanitário. O precedente provavelmente influenciará julgamentos futuros sobre contrabando de medicamentos, suplementos alimentares, agrotóxicos e outros produtos regulados por agências sanitárias.

O caso dos cigarros eletrônicos evidencia desafio permanente do Direito Penal em acompanhar inovações tecnológicas. Novos produtos surgem em velocidade superior à capacidade de resposta legislativa. Isso exige do Judiciário constante reinterpretação de normas e precedentes para manter a efetividade da tutela penal.

A tensão entre segurança jurídica, proporcionada por critérios objetivos como o Tema 1143, e necessidade de análise casuística, evidenciada na decisão sobre cigarros eletrônicos, permanecerá como questão central na aplicação do princípio da insignificância. O equilíbrio entre previsibilidade e flexibilidade constitui desafio permanente para a jurisprudência criminal.

Conclusão

A decisão do STJ no AgRg no REsp 2.184.785-PR representa marco importante na evolução jurisprudencial sobre o princípio da insignificância no crime de contrabando. Ao estabelecer que o parâmetro quantitativo fixado no Tema 1143 não se aplica automaticamente a produtos com características distintas dos cigarros convencionais, a Corte demonstrou maturidade interpretativa e compromisso com a proteção efetiva dos bens jurídicos tutelados pela norma penal.

Logo, para os operadores do direito, especialmente aqueles em preparação para concursos públicos, a decisão oferece rica oportunidade de estudo sobre a interseção entre Direito Penal, Direito Sanitário e princípios de política criminal. A compreensão adequada do precedente exige não apenas memorização de teses, mas análise crítica dos fundamentos que distinguem situações aparentemente similares.

A mensagem jurisprudencial é cristalina: no complexo equilíbrio entre eficiência penal e proteção de bens jurídicos, a natureza específica do objeto material do crime pode determinar soluções diferenciadas.

Cigarros eletrônicos, por suas características intrínsecas de reutilização e proibição absoluta, não admitem a flexibilização permitida para cigarros convencionais. Essa orientação certamente norteará a aplicação do princípio da insignificância em futuras controvérsias envolvendo produtos de importação proibida, consolidando jurisprudência mais sofisticada e atenta às peculiaridades de cada situação concreta.


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