* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
Durante uma audiência de instrução, o magistrado Paulo Afonso Correia Lima Siqueira, do Distrito Federal, questionou a veracidade do depoimento apresentado, perguntando: “Como é que eu vou saber que o senhor está falando a verdade?”.
A testemunha respondeu: “Olhando dentro do olho do senhor, estou falando a verdade. Não vim aqui para mentir”.
O juiz, então, disparou:
“Não sou oftalmologista. Se o senhor estiver pensando que eu sou oftalmologista. Não estou aqui para fazer exame de olho de ninguém”.
Não é a primeira vez
Essa não é a primeira polêmica envolvendo o juiz.
Em 2023, o magistrado perdeu a paciência com um policial militar durante audiência. Segundo o julgador, o agente teria forjado uma situação para entrar em residência onde havia drogas.
E, segundo o magistrado, o policial já tinha feito isso antes, e que, por isso, a paciência do juiz havia acabado. O juiz não deu voz de prisão, mas comunicou à corregedoria da Polícia Militar para que houvesse a responsabilização do agente.
"O senhor não é policial civil, o senhor é policial militar. Cabe ao senhor passar para a Polícia Civil as informações para investigar. Se o senhor quer ser investigador, faça concurso para investigador."
Análise jurídica
Dever de polícia
Na condução do processo, e em especial na audiência, o magistrado possui poder de polícia, o que lhe confere poderes e deveres, conforme prevê o código de processo civil, em seu artigo 360.
O excesso no poder de polícia exercido pelo magistrado pode resultar em abuso de autoridade, necessitando, porém, de demonstração inequívoca.
Em decorrência do poder de polícia do juiz, incumbe a ele:
- I – Manter a ordem e o decoro na audiência;
- II – Ordenar que se retirem da sala de audiência os que se comportarem inconvenientemente;
- III – Requisitar, quando necessário, força policial;
- IV – Tratar com urbanidade as partes, os advogados, os membros do Ministério Público e da Defensoria Pública e qualquer pessoa que participe do processo;
- V – Registrar em ata, com exatidão, todos os requerimentos apresentados em audiência.
Portanto, dentre este rol de deveres e direitos, destaca-se o dever de tratar qualquer pessoa que atue no processo com urbanidade, inclusive as testemunhas.
Urbanidade
A Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, dispõe, em seu artigo art. 35, IV, que é dever do magistrado, dentre outros, “tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procuram, a qualquer momento, quando se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência”.
Mas esse dever de urbanidade não é exclusivo dos magistrados.
Em relação ao Ministério Público, a lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional) impõe, como dever da categoria, “tratar com urbanidade as partes, testemunhas, funcionários e auxiliares da Justiça” (Art. 43, IX).
Já em relação à advocacia, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, prevê, que o advogado observará, nas suas relações com os colegas de profissão, agentes políticos, autoridades, servidores públicos e terceiros em geral, o dever de urbanidade, tratando a todos com respeito e consideração, ao mesmo tempo em que preservará seus direitos e prerrogativas, devendo exigir igual tratamento de todos com quem se relacione.
Além do mais, consideram-se imperativos de uma correta atuação profissional o emprego de linguagem escorreita e polida, bem como a observância da boa técnica jurídica.
Portanto, o tratamento dado pelo magistrado no caso é digno de reflexão, a fim de se analisar os exatos contornos do direito de urbanidade que se deve conferir à testemunha.
Valoração da prova testemunhal
A valoração da prova testemunhal é ato próprio do juiz, que tem a competência para atribuir uma maior ou menor eficácia ao testemunho, levando em conta a impressão causada pela testemunha ao prestar suas declarações.
Essa prerrogativa avaliativa decorre do artigo 371, do CPC, que fundamenta a utilização do livre convencimento motivado.
CPC Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Existem parâmetros que o magistrado precisa seguir na oitiva da testemunha, conforme prevê nosso código de processo civil. Vejamos os principais:
- As testemunhas depõem, na audiência de instrução e julgamento, perante o juiz da causa, exceto:
- I – as que prestam depoimento antecipadamente;
- II – as que são inquiridas por carta.
- O juiz inquirirá as testemunhas separada e sucessivamente, primeiro as do autor e depois as do réu, e providenciará para que uma não ouça o depoimento das outras. Havendo acordo entre as partes, é possível alterar essa ordem.
- Ao início da inquirição, a testemunha prestará o compromisso de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, devendo o juiz advertir à testemunha que incorre em sanção penal quem faz afirmação falsa, cala ou oculta a verdade.
- As testemunhas devem ser tratadas com urbanidade, não se lhes fazendo perguntas ou considerações impertinentes, capciosas ou vexatórias.
- As partes formulam as perguntas diretamente à testemunha, começando pela que a arrolou, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com as questões de fato objeto da atividade probatória ou importarem repetição de outra já respondida.
- O depoimento poderá ser documentado por meio de gravação.
- O depoimento prestado em juízo é considerado serviço público.
Justa prestação jurisdicional
A sociedade exige, cada vez mais, do Judiciário e de todos os operadores do direito, um comportamento ético, polido, respeitoso, essencial para uma efetiva e justa prestação jurisdicional, e, infelizmente, está se tornando corriqueiro cenas de bate-boca, brigas e discussões em audiências e outros atos processuais.
Ótimo tema para ser cobrado em provas de direito processual civil.
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