STJ decide que a confissão prévia não é requisito para o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), garantindo maior flexibilidade na celebração de acordos. – Info 843

No informativo 843, foi divulgado julgamento muito relevante realizado no último dia 12 de março, pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em que por unanimidade, fixou importante tese em matéria de direito processual penal ao apreciar o Tema 1303 dos recursos repetitivos (REsp 2.161.548-BA).
Em síntese, a Corte pacificou o entendimento de que a ausência de confissão na fase de inquérito policial não constitui fundamento válido para que o Ministério Público se recuse a oferecer proposta de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).
Contornos da decisão – Confissão prévia
O julgamento, conduzido pelo Relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador convocado do TJSP), estabeleceu duas teses fundamentais:
- A confissão pelo investigado na fase de inquérito policial não constitui exigência do art. 28-A do Código de Processo Penal para o cabimento de Acordo de Não Persecução Penal, sendo inválida a negativa de formulação da respectiva proposta baseada em sua ausência.
- A formalização da confissão para fins do ANPP pode se dar no momento da assinatura do acordo, perante o próprio órgão ministerial, após a ciência, avaliação e aceitação da proposta pelo beneficiado, devidamente assistido por defesa técnica, dado o caráter negocial do instituto.
No íntimo, esta decisão alinha-se à jurisprudência já consolidada no STJ, que havia firmado posicionamento semelhante no Tema Repetitivo n. 1098, no qual se entendeu cabível a celebração do ANPP “em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento”, seguindo a mesma linha do decidido pelo Supremo Tribunal Federal no HC n. 185.913/DF.
O que é o ANPP?
A Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) inseriu o art. 28-A ao CPP, criando, no ordenamento jurídico pátrio, o instituto do acordo de não persecução penal (ANPP).
Consiste em um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado, juntamente com seu defensor, como alternativa à propositura de ação penal para certos tipos de crimes, principalmente no momento presente, em que se faz necessária a otimização dos recursos públicos e a efetivação da chamada Justiça multiportas, com a perspectiva restaurativa (Min. Reynaldo Soares da Fonseca).
Confira a redação do texto legal:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
(...)
§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.
O cerne da questão reside no reconhecimento do ANPP como um negócio jurídico processual. Esta premissa, já fixada anteriormente pelo STJ no Tema 1098, estabelece que o instituto “entabula possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal.

Por qual razão não se exige a confissão antecipada?
Na visão do STJ, torna-se evidente que não se pode exigir que a parte mais vulnerável da relação – o investigado – cumpra antecipadamente uma das obrigações (no caso, a confissão) sem sequer ter conhecimento se terá a oportunidade de negociar.
O tribunal destacou que a confissão é, de fato, “indispensável à realização do acordo, por ser o que revela o caráter de justiça negocial do ANPP”, conforme já decidido no AgRg no HC n. 879.014/PR. No entanto, não há previsão legal que determine que esta confissão deva ocorrer previamente à proposta do acordo.
Garantia de não autoincriminação
Ademais, um dos principais fundamentos da decisão está na necessidade de preservação da garantia de não autoincriminação, prevista no art. 8.2, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
Além disso, a Corte enfatizou que exigir confissão prévia, sem a certeza da contrapartida (ou seja, sem garantia de que o acordo será efetivamente proposto), representaria uma restrição desarrazoada ao direito ao silêncio e à não autoincriminação.
Outrossim, tal exigência poderia incentivar confissões em ambiente inquisitorial, sem a plenitude das garantias do devido processo legal e, muitas vezes, sem assistência de defesa técnica. Esta situação seria incompatível com os esforços que o próprio STJ tem empreendido pela racionalização do uso da confissão extrajudicial no processo penal.
Escolha informada e assistida
O julgado ressalta que a opção pela confissão deve ser uma escolha informada, realizada com pleno conhecimento de seus efeitos e consequências. Isso implica:
- Ciência do conteúdo da proposta formulada pelo Ministério Público
- Conhecimento dos elementos que fundamentam a pretensão acusatória
- Necessária assistência por defesa técnica
Inclusive, a ausência de orientação e presença da defesa técnica, segundo já decidido pelo STJ no HC n. 838.005/MS, contamina a negativa de acordo.
Interpretação convencional
Em breve síntese, a decisão adota uma interpretação que maximiza a efetividade dos direitos humanos, compatibilizando a possibilidade legal de celebração do ANPP com a força normativa do art. 8.2, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos.
De um lado, não se pode obrigar o investigado a depor contra si mesmo ou a declarar-se culpado, transformando a confissão em requisito prévio à própria proposta de acordo. De outro, também não seria adequado interpretar que o uso desse direito (silêncio) na fase inquisitorial impediria o acesso posterior ao benefício do ANPP.
Tal interpretação contrariaria o art. 29, “b”, da CADH, que estabelece que nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-Partes”.
Momento da confissão – Confissão prévia
Por fim, diante do silêncio do art. 28-A do Código de Processo Penal quanto ao momento em que deve ocorrer a confissão, a Corte entendeu que esta pode ser realizada perante o próprio Ministério Público, após:
- Formulação da proposta de acordo
- Avaliação pelo investigado (assistido por defesa técnica)
- Eventual negociação
- Aceitação dos termos do ANPP
Lado outro, esse entendimento preserva tanto o caráter negocial do instituto quanto as garantias processuais do investigado, especialmente o direito à não autoincriminação.
Consequências práticas
A decisão representa um avanço significativo na aplicação do instituto do ANPP, que foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime).
Ao fixar esta tese em sede de recurso repetitivo (Tema 1303), o STJ estabelece um precedente de observância obrigatória para as instâncias inferiores, promovendo segurança jurídica e uniformidade na aplicação do instituto em todo o território nacional.
A decisão potencializa a efetividade do ANPP como instrumento de política criminal despenalizadora, permitindo que mais casos sejam resolvidos pela via consensual, com economia de recursos do sistema de justiça e maior celeridade na solução dos conflitos penais.
Breve Resumo – Confissão prévia
Os requisitos para a propositura do ANPP estão previstos no caput e no § 2º do art. 28-A do CPP e podem ser assim sistematizados:
REQUISITOS PARA QUE O MP POSSA PROPOR O ANPP | |
1) não ser o caso de arquivamento | Se não houver justa causa ou existir alguma outra razão que impeça a propositura da ação penal, não é caso de oferecer o acordo, devendo o MP pedir o arquivamento do inquérito policial ou investigação criminal. |
2) o investigado deve ter confessado a prática da infração penal | O ANPP exige que o investigado tenha confessado formal (em ato solene) e circunstancialmente (com detalhes) a prática da infração penal.O art. 18, § 2º, da Res. 181/2017-CNMP exige que a confissão seja registrada em áudio e vídeo. |
3) infração penal foi cometida sem violência e sem grave ameaça | A infração penal não pode ter sido cometida com violência ou grave ameaça.Prevalece que é cabível ANPP se a infração foi cometida com violência contra coisa.Assim, o ANPP somente é proibido se a infração foi praticada com grave ameaça ou violência contra pessoa. |
4) a pena mínima da infração penal é menor que 4 anos | A infração penal cometida deve ter pena mínima inferior a 4 anos.Se a pena mínima for igual ou superior a 4 anos, não cabe.Para aferição da pena mínima, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.Aplicam-se ao ANPP, por analogia, as súmulas 243-STJ e 723-STF. |
5) o acordo deve se mostrar necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime no caso concreto | Esse requisito revela que a propositura, ou não, do acordo está atrelada a certo grau de discricionariedade do membro do MP, que avaliará se essa necessidade e suficiência estão presentes no caso concreto. |
6) não caber transação penal | Se for cabível transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/95), o membro do MP deve propor a transação (e não o ANPP). Isso porque se trata de benefício mais vantajoso ao investigado.Por outro lado, mesmo que seja cabível a suspensão condicional do processo, ainda assim, o membro do MP pode propor o ANPP. |
7) o investigado deve ser primário | Se o investigado for reincidente (genérico ou específico), não cabe ANPP. |
8) não haver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas | Regra: se houver elementos probatórios que indiquem que o investigado possui uma conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, não cabe ANPP.Exceção: se essas infrações pretéritas que o investigado se envolveu forem consideradas “insignificantes”, será possível propor ANPP. |
9) o agente não pode ter sido beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração com outro ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo | No momento de decidir se vai propor o ANPP, o membro do MP deverá analisar se, nos últimos 5 anos (contados da infração), aquele investigado já foi beneficiado:· com outro ANPP;· com transação penal ou· com suspensão condicional do processo. |
10) a infração praticada não pode estar submetida à Lei Maria da Penha | Não cabe ANPP nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. |
Como o tema já foi cobrado em concursos: Confissão prévia
Instituto Consulplan – Prova: Instituto Consulplan – MPE SC – Promotor de Justiça Substituto – Manhã – 2024
Com a Lei Anticrime surge o instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), cujo cumprimento integral traduz-se em uma causa de extinção da punibilidade. Todavia, o marco legal do ANPP veda a aplicação do acordo nos crimes de violência doméstica e nos crimes de racismo, o que encontra respaldo, incontroverso, na doutrina e na jurisprudência. É preciso lembrar, também, que não deve ser oferecido o acordo se no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante o preso não confessar circunstanciadamente. Ademais, a referida lei, no que tange ao acordo de não persecução penal, não pode ser aplicado a fatos ocorridos antes de sua vigência.
Gabarito: Errado
Confissão prévia
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