Imagine que você mora em um condomínio residencial e suspeita de irregularidades na administração das despesas comuns.
É possível e natural que um único condômino possa ingressar com uma ação judicial de “exigir contas” em face do síndico?
Em um caso análogo, o STJ se pronunciou recentemente no informativo 831 sobre esse assunto através do AgInt no AREsp 2.408.594-SP, como já tinha sido noticiado anteriormente pela 3ª Turma em 2023:
Condômino não pode ajuizar ação de exigir contas individualmente, decide STJ
A decisão do STJ, embora originada de um caso envolvendo um shopping center em Sorocaba, estabelece diretrizes que se aplicam tanto aos condomínios comerciais quanto aos residenciais.
Em ambas as situações, o princípio é o mesmo: a prestação de contas deve seguir o caminho institucional estabelecido em lei, privilegiando o interesse coletivo sobre o individual.
O caso concreto
Em breve síntese, o litígio teve início quando um lojista do José Sorocaba Shopping Center decidiu, individualmente, ajuizar uma ação de prestação de contas contra a administração do estabelecimento. No caso concreto, o autor buscava obter demonstrações analíticas das despesas rateadas entre os locatários, questionando a transparência na gestão dos valores comuns. É como se ele desconfiasse dos valores aplicados da gestão.
Em primeira instância, o pedido foi acolhido, e o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve o entendimento, reconhecendo a legitimidade do lojista para tal pleito.
Então a administração do shopping, inconformada com a decisão, levou a questão ao STJ, argumentando que a prestação de contas deveria seguir o rito estabelecido pela Lei de Condomínios (Lei nº 4.591/1964) e pelo Código Civil, que preveem a assembleia como único foro legítimo para tal procedimento.
Quais são as legislações aplicáveis?
De início, a Lei nº 4.591/1964, conhecida como Lei de Condomínios, representa o primeiro pilar desse julgamento.
Em seu artigo 22, § 1º, f, estabelece com clareza meridiana o dever fundamental do síndico de prestar contas à assembleia. Observe que esta obrigação não é meramente formal ou protocolar, mas constitui elemento essencial da própria natureza do cargo sindical, fundamentada no princípio da transparência que deve nortear a gestão condominial.
Inclusive, o legislador, ao estabelecer este dever, reconheceu a assembleia como órgão máximo deliberativo, capaz de fiscalizar e aprovar as contas da administração.
Além disso, o Código Civil de 2002, por sua vez, não apenas reiterou esta obrigação, mas a fortaleceu significativamente. Através do artigo 1.348, VIII, o CC estabeleceu um verdadeiro poder-dever do síndico, vinculando sua gestão a um controle efetivo pela coletividade dos condôminos.
Assim, esta duplicidade de previsões legais – na Lei específica e no Código Civil – não é redundante, mas sim complementar, evidenciando a importância que o legislador conferiu à matéria.
Por fim, adiciona-se a este cenário a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), que traz disposições específicas sobre centros comerciais, reconhecendo suas peculiaridades e estabelecendo regras próprias para estes empreendimentos.
1) A Lei nº 4.591/1964, em seu artigo 22, § 1º, f, estabelece o dever do síndico de prestar contas à assembleia; 2) O Código Civil, através do artigo 1.348, VIII, reforça esta obrigação; 3) A Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91) traz disposições específicas sobre centros comerciais.
E o que decidiu o STJ?
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, tentou harmonizar estes diferentes diplomas legais.
Nessa linha, o acórdão, decidido por unanimidade, estabeleceu três pilares fundamentais que merecem análise detida.
1)O primeiro pilar se assenta na compreensão da natureza essencialmente coletiva da prestação de contas condominial. Ou seja, o STJ reconheceu que esta prestação não se destina a satisfazer interesses individuais isolados, mas sim a garantir a transparência e a regularidade da gestão perante toda a comunidade condominial.
Em outras palavras, este entendimento se alinha com a própria natureza do condomínio, que representa uma comunhão de interesses em torno de uma propriedade compartilhada.
2)O segundo pilar reafirma a supremacia da assembleia como órgão deliberativo máximo do condomínio.
Ora, não se trata de uma mera formalidade procedimental, mas um reconhecimento da importância do fórum coletivo como espaço democrático de discussão e deliberação.
Isto porque, a assembleia, neste contexto, não é apenas um local de votação, mas um espaço institucional onde os interesses individuais se confrontam e se harmonizam em busca do interesse comum.
3)O terceiro pilar, que trata da necessidade de preservar a gestão democrática do condomínio, representa talvez o aspecto mais inovador da decisão. O STJ reconheceu que permitir ações individuais de prestação de contas poderia fragmentar o controle da gestão condominial, potencialmente gerando decisões conflitantes e prejudicando a eficiência administrativa.
Consequências práticas
Diante da impossibilidade de agir isoladamente para exigir prestação de contas, quais seriam os caminhos legítimos para um condômino que suspeita de irregularidades? O STJ, em seu julgado, apresenta um possível roteiro:
1. Fase Preparatória – levantamento e documentação
O primeiro passo é fundamentalmente documental e investigativo, compreendendo:
- Exercício do direito de exame da documentação condominial, conforme art. 1.350, §1º, do Código Civil;
- Solicitação formal por escrito (preferencialmente por meio de notificação) ao síndico para apresentação dos documentos específicos;
- Análise detalhada das prestações de contas anteriores e atas de assembleias.
2. Fase de mobilização coletiva
- Formação de grupo com no mínimo 1/4 dos condôminos para requerer assembleia extraordinária (art. 1.350, §2º, CC);
- Elaboração de pauta específica e bem fundamentada;
- Protocolo formal do requerimento de convocação de assembleia junto ao síndico.
3. Fase Assemblear
- Apresentação ordenada dos questionamentos;
- Solicitação de esclarecimentos pontuais sobre cada item contestado;
- Requerimento de auditoria externa independente, se necessário;
- Registro detalhado em ata de todos os questionamentos e respostas.
4. Medidas Jurídicas Cabíveis
a) Se as contas forem aprovadas irregularmente:
- Ação anulatória da assembleia (prazo decadencial de 2 anos, art. 179, CC);
- Pedido de tutela de urgência para suspensão dos efeitos da aprovação.
b) Em caso de indícios de má gestão:
- Ação de responsabilidade civil contra o síndico;
- Pedido de prestação de contas pelo condomínio (não pelo condômino individual).
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