De início, trataremos desse julgado:

Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 615/DF, enfrentou questão de enorme relevância para o direito processual brasileiro: a possibilidade de desconstituição da coisa julgada formada nos juizados especiais quando o título executivo judicial se revela contrário à interpretação constitucional posteriormente firmada pela Corte Suprema.
Assim, a decisão, relatada pelo Ministro Luís Roberto Barroso com redação final do Ministro Alexandre de Moraes, estabeleceu parâmetros inovadores que harmonizam a proteção à coisa julgada com o princípio da supremacia constitucional.
O contexto fático que originou a controvérsia merece atenção detalhada.
Contexto
O Distrito Federal instituiu, por meio das Leis distritais 4.075/2007 e 5.105/2013, a Gratificação de Atividade de Ensino Especial (GAEE), destinada exclusivamente aos professores que atendessem alunos portadores de necessidades educativas ou em situações de risco e vulnerabilidade.
Perceba, a palavra "exclusivamente" tornou-se o epicentro da disputa jurídica. O Sindicato dos Professores no Distrito Federal (SINPRO/DF) propôs inúmeras ações nos Juizados Especiais argumentando pela inconstitucionalidade dessa expressão, pretendendo estender a gratificação a todos os docentes que tivessem pelo menos um aluno com necessidades especiais em suas turmas.
Inicialmente, os Juizados Especiais acolheram essa tese, resultando em mais de 8.500 sentenças favoráveis aos professores que transitaram em julgado.
Todavia, quando a matéria foi submetida ao controle concentrado de constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o resultado foi diametralmente oposto.
O TJDFT declarou a constitucionalidade do termo “exclusivamente” constante do art. 20, inciso I, da Lei Distrital 5.105/2013, confirmando que a GAEE deveria ser conferida apenas aos professores que atendessem exclusivamente alunos portadores de necessidades educativas.
Essa decisão foi posteriormente confirmada pelo próprio STF no julgamento do Recurso Extraordinário 1.287.126.
Diante desse cenário, o Distrito Federal tentou desconstituir os milhares de títulos executivos judiciais formados nos Juizados Especiais, utilizando-se de exceções de pré-executividade.
Contudo, os órgãos jurisdicionais rejeitaram sistematicamente essas arguições. Utilizou-se o fundamento da premissa de que a declaração de inconstitucionalidade posterior não possuiria o condão de esvaziar por inteiro o conteúdo da coisa julgada, especialmente quando o trânsito em julgado da sentença condenatória ocorrera anteriormente ao reconhecimento da constitucionalidade da norma.
Configurou-se, assim, uma situação jurídica excêntrica: sentenças inconstitucionais proferidas sob o procedimento dos juizados especiais tornaram-se imunes à impugnação, enquanto sentenças proferidas pelos demais órgãos jurisdicionais, sob o rito comum, poderiam ser rescindidas se estivessem em desacordo com a interpretação constitucional fixada pelo Supremo Tribunal Federal.
A questão central apresentada ao STF transcendeu o caso concreto: como compatibilizar a vedação de ação rescisória prevista no artigo 59 da Lei 9.099/1995 com a supremacia da Constituição e a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal?
Segurança jurídica
O Ministro Luís Roberto Barroso, ao proferir seu voto, desenvolveu fundamentação dogmática que merece análise minuciosa.
Primeiramente, o relator estabeleceu premissa fundamental: a proteção à coisa julgada, embora seja expressão da segurança jurídica e esteja prevista no catálogo de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal), não constitui direito absoluto.
Assim, a teoria constitucional contemporânea reconhece que a proteção à coisa julgada pode entrar em conflito com outros princípios e garantias tutelados pela Constituição. Caberia então ao intérprete definir qual deles irá preponderar e em que medida.
Afinal, se nenhuma decisão judicial transitada em julgado pudesse ser desconstituída, situações jurídicas profundamente injustas poderiam se perpetuar indefinidamente.
Instrumentos processuais
Para mediar esses conflitos, o legislador criou dois instrumentos processuais específicos.
Ora, o principal deles é a ação rescisória, prevista nos artigos 966 a 975 do Código de Processo Civil de 2015.
Trata-se de ação autônoma de impugnação por meio da qual se busca a desconstituição de decisões judiciais de mérito transitadas em julgado, seguida de novo julgamento. Seu cabimento restringe-se a situações especialmente graves, taxativamente previstas em lei, sendo necessário observar prazo decadencial específico e realizar depósito prévio.
O segundo instrumento é a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial, prevista nos arts. 525 e 535 do CPC/2015, que constitui alegação apresentada em sede de embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença. Seu acolhimento impede a produção dos efeitos da decisão judicial transitada em julgado, mas não a desconstitui formalmente.
Antes e depois do CPC/2025
No regime anterior ao CPC/2015, estabelecia-se que os efeitos de decisão transitada em julgado baseada em norma declarada inconstitucional pelo STF não seriam desconstituídos automaticamente, conforme firmado no Recurso Extraordinário 730.462, paradigma do Tema 733 da repercussão geral.
Logo, cabia à parte interessada utilizar arguição de inexigibilidade do título executivo judicial ou ação rescisória. Contudo, após esgotados os prazos processuais específicos, não havia instrumento jurídico disponível para a paralisação dos efeitos da coisa julgada inconstitucional. Além disso, a jurisprudência consolidou-se no sentido de impedir a rescisão de decisões fundadas em normas que recebiam interpretação divergente nos tribunais (Súmula 343/STF) ou consideradas válidas pelo Plenário do STF à época do trânsito em julgado (Tema 136 da repercussão geral).
Como medida de reforço à supremacia da Constituição, o CPC/2015 estabeleceu regime diferenciado, prevendo que a inexigibilidade deve ser arguida em sede de impugnação ao cumprimento de sentença mesmo quando o precedente paradigma seja posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. Nesta hipótese, o título executivo judicial deve ser desconstituído por meio de ação rescisória, a ser ajuizada no prazo decadencial de dois anos que se inicia com o trânsito em julgado da decisão do STF (artigos 525, parágrafo 15, e 535, parágrafo 8º, do CPC/2015).
Assim, essa evolução normativa foi validada pelo STF no julgamento da questão de ordem na Ação Rescisória 2.876. Na ocasião, considerou-se compatível com a Constituição a regra segundo a qual o prazo decadencial para ajuizamento da ação rescisória começa a fluir a partir do trânsito em julgado da decisão da Corte Suprema.
Ademais, essa interpretação impede a perpetuação da eficácia de decisões contrárias à interpretação definida pelo Supremo Tribunal Federal. Com esse novo entendimento, foi superado o item “c” da tese fixada para o Tema 360 da repercussão geral, que limitava a apresentação de arguição de inexequibilidade do título judicial aos casos em que o reconhecimento da inconstitucionalidade tivesse decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda.
Solução
Ora, a dificuldade enfrentada na ADPF 615/DF residia precisamente na vedação de ação rescisória nos juizados especiais. O Ministro Luís Roberto Barroso desenvolveu raciocínio preciso ao afirmar que essa proibição não pode representar obstáculo à rediscussão da matéria quando o título transitado em julgado divergir de interpretação constitucional fixada pelo STF.
Isto porque, atribuir imunidade e caráter absoluto às sentenças inconstitucionais dos juizados especiais transitadas em julgado representa grave ofensa à ordem constitucional.

Perceba, a vedação de acesso a uma via processual específica pode estar compreendida em espaço de legítima conformação legislativa, mas o legislador não pode deixar de assegurar algum meio apto e idôneo para preservar a supremacia da Constituição, independentemente da origem do título executivo.
A solução encontrada pela Corte Suprema demonstra notável criatividade jurídica.
Isto porque, em vez de estender ao procedimento dos juizados especiais o cabimento de ação rescisória, o que implicaria atribuir à Turma Recursal competência não prevista em lei ou retirar a demanda do sistema dos juizados, o STF concluiu pela possibilidade de aplicação das regras previstas nos artigos 475-L, parágrafo 1º, e 741, parágrafo único, do CPC/1973, bem como nos artigos 525, parágrafo 1º, inciso III e parágrafos 12 e 14, e 535, parágrafo 5º, do CPC/2015, no âmbito dos juizados especiais.
Nessas hipóteses, a desconstituição do título executivo deve ser pleiteada por meio de simples petição. Essa solução se justifica em razão da necessidade de adotar procedimentos judiciais mais céleres e informais para resolução de conflitos de menor complexidade.
Importante destacar que não se atribuiu à paralisação dos efeitos de sentenças nos juizados especiais alcance mais amplo do que o definido pela Corte para a Justiça Comum.
Aplicam-se as mesmas premissas:
• a alegação de inexequibilidade deve ser admitida mesmo se a norma em que se baseia o título executivo judicial for declarada inconstitucional pelo STF após o trânsito em julgado da sentença exequenda; • a postulação deve ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória (dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF); e, • se o Supremo Tribunal Federal não modular os efeitos da decisão paradigma, os efeitos retroativos da desconstituição da coisa julgada inconstitucional não devem exceder os cinco anos anteriores à data da arguição da inexigibilidade do título executivo.
Teses
Logo, o Plenário do STF, por maioria de votos, julgou procedente a ação e fixou teses de grande repercussão prática.
Primeira tese: é possível aplicar o artigo 741, parágrafo único, do CPC/1973, atual artigo 535, parágrafo 5º, do CPC/2015, aos feitos submetidos ao procedimento sumaríssimo, desde que o trânsito em julgado da fase de conhecimento seja posterior a 27 de agosto de 2001.
Segunda tese: é admissível a invocação como fundamento da inexigibilidade de ser o título judicial fundado em aplicação ou interpretação tida como incompatível com a Constituição quando houver pronunciamento jurisdicional contrário ao decidido pelo Plenário do STF, seja no controle difuso, seja no controle concentrado de constitucionalidade.
Terceira tese: o artigo 59 da Lei 9.099/1995 não impede a desconstituição da coisa julgada quando o título executivo judicial estiver em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, sendo admissível o manejo de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória.
Ademais, o STF declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 525, parágrafo 14, e do art. 535, parágrafo 7º, ambos do CPC/2015, que limitavam a alegação de inexigibilidade aos casos em que a decisão do STF fosse anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. Essa declaração de inconstitucionalidade consolida o entendimento de que a supremacia constitucional deve prevalecer independentemente do marco temporal em que o STF firma sua interpretação sobre a matéria.
Por fim, houve modificação da tese firmada no Recurso Extraordinário 611.503 (Tema 360 da repercussão geral), para estabelecer que são constitucionais as disposições que vieram agregar ao sistema processual brasileiro mecanismo com eficácia paralisante de sentenças revestidas de vício de inconstitucionalidade qualificado, assim caracterizado nas hipóteses em que a sentença exequenda está em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão.
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