Entenda o caso do ‘vale-peru’: CNJ determina a devolução de pagamento de R$10 mil a magistrados e servidores do TJMT.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
O Tribunal de Justiça do Mato Grosso havia aprovado, por meio de um provimento assinado pela presidente do Conselho da Magistratura, desembargadora Clarice Claudino da Silva, a fixação de auxílio-alimentação no valor de R$10 mil para magistrados e servidores do tribunal, no mês de dezembro.
O pagamento ficou conhecido como “Vale-peru” ou “Vale-ceia”.
O valor regular, pago todo mês, é de R$2.055,00, mas, em decorrência das festividades de final de ano, o valor de dezembro seria turbinado, chegando ao montante de R$10.055,00.
Vale lembrar que esse aumento seria excepcional, e exclusivamente para o mês de dezembro.
PROVIMENTO TJMT/CM N. 36 DE 17 DE DEZEMBRO DE 2024 Art. 1º Fixar, de modo excepcional e exclusivamente para o mês de dezembro/2024, o valor do auxílio-alimentação pago às servidoras, aos servidores, às magistradas e aos magistrados ativos do Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso, no valor de R$ 10.055,00 (dez mil e cinquenta e cinco reais). Art. 2° A partir da competência de janeiro/2025, o valor do auxílio-alimentação será no importe de R$2.055,00 (dois mil e cinquenta e cinco reais).
A notícia ganhou notoriedade e acabou viralizando e, consequentemente, atraindo uma avalanche de críticas da opinião pública.
Em 2023, também em dezembro, foi concedido um bônus de R$6,9 mil aos servidores e magistrados do Estado.
Inicialmente, o Conselho Nacional de Justiça informou que não há previsão de controle prévio ou posterior desses atos pela entidade, destacando que a fiscalização cabe aos Tribunais de Contas estaduais.
Posteriormente, o CNJ, através do corregedor nacional de Justiça, o ministro Mauro Campbell Marques, determinou a abertura de um procedimento para apurar o pagamento.
Para o pagamento do vale-peru foram empenhados quase R$ 100 milhões pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso.
Entre juízes de primeira instância e desembargadores (segunda instância), o TJMT possui cerca de 320 magistrados.
O TJMT é considerado um dos tribunais que mais gasta com magistrados. Segundo dados do CNJ, em 2023, cada magistrado do Mato Grosso custou em média R$116,6 mil por mês.
CNJ determina a suspensão do pagamento
No dia 20 de dezembro de 2024, o ministro Mauro Campbell Marques, corregedor nacional de justiça, determinou a suspensão do pagamento do vale-peru.
Campbell entendeu que o aumento do auxílio-alimentação representa uma “desconfiguração” do benefício e achou necessário suspender o pagamento para analisar profundamente o caso.
O Procurador-Geral de Justiça do Mato Grosso, Rodrigo Fonseca, ressaltou que, se os procedimentos relativos ao pagamento estiverem dentro da legalidade e ocorrerem de forma lícita, não vê problema na concessão, haja vista ser um direito do Tribunal conceder o aumento temporário e excepcional.
A grande questão é saber se esse pagamento, mesmo que previsto em regulamento próprio, afronta ou não o princípio da moralidade administrativa.
Princípio da Moralidade Administrativa
O artigo 37, da Constituição Federal, traz uma série de princípios que devem ser observados pela Administração Pública, a exemplo da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
O princípio da moralidade administrativa exige que os agentes públicos atuem de maneira ética, proba, com boa-fé, sob pena de afronta à Constituição e cometimento de improbidade administrativa.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, de forma brilhante, leciona:
“Sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do Administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa”
Aspectos do princípio da moralidade administrativa
O princípio da moralidade administrativa pode ser entendido sob três aspectos distintos:
a) Dever de atuação ética (princípio da probidade): o agente público deve ter um comportamento ético, transparente e honesto perante o administrado. Assim, o agente público não pode sonegar, violar nem prestar informações incompletas com o objetivo de enganar os administrados. Não pode um agente se utilizar do conhecimento limitado que as pessoas têm sobre a administração para obter benefícios pessoais ou prejudicar indevidamente o administrado;
b) Concretização dos valores consagrados na lei: o agente público não deve limitar-se à aplicação da lei, mas buscar alcançar os valores por ela consagrados. Assim, quando a Constituição institui o concurso público para possibilitar a isonomia na busca por um cargo público, o agente público que preparar um concurso dentro desses ditames (proporcionar a isonomia) estará também cumprindo o princípio da moralidade;
c) Observância dos costumes administrativos: a validade da conduta administrativa se vincula à observância dos costumes administrativos, ou seja, às regras que surgem informalmente no cotidiano administrativo a partir de determinadas condutas da Administração. Assim, desde que não infrinja alguma lei, as práticas administrativas realizadas reiteradamente, devem vincular a Administração, uma vez que causam no administrado um aspecto de legalidade.
CNJ determina a devolução do pagamento
A ordem de suspensão não foi cumprida em decorrência do pagamento administrativo pelo Tribunal. A Corte sustentou que, quando foi intimado pelo CNJ a não conceder o valeu-peru, o pagamento já havia sido operacionalizado e não foi possível efetivar o cumprimento.
Diante do pagamento realizado, o CNJ determinou a devolução do montante depositado na conta dos magistrados e servidores do TJMT.
Os magistrados deverão fazer a devolução imediata, e os servidores devem devolver de forma parcelada.
O Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário de Mato Grosso (Sindjusmat) lamentou a decisão do CNJ, e disse que irá recorrer ao Conselho para evitar a devolução dos valores já pagos.
O presidente do Sindicato, Rosenwal Rodrigues, defendeu que o pagamento foi realizado de boa-fé, não havendo que se falar em devolução.
O STJ tem entendimento de que o servidor que recebe a mais por erro operacional é obrigado a devolver a diferença, salvo prova de boa-fé. Neste sentido, temos o TEMA 1009, do Superior Tribunal de Justiça.
Tema 1009 do STJ:
Os pagamentos indevidos aos servidores públicos decorrentes de erro administrativo (operacional ou de cálculo), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, estão sujeitos à devolução, ressalvadas as hipóteses em que o servidor, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido”
No caso do vale-peru, é preciso ressaltar que o pagamento foi realizado após a ordem de suspensão do CNJ (mas antes da intimação do Tribunal), o que é suficiente para justificar a devolução, ainda mais levando em conta que não houve erro administrativo, e sim decisão político-administrativa pelo pagamento, que foi considerado pelo Tribunal indevido, pelo menos neste momento.
Em mensagem aos magistrados do Mato Grosso, a desembargadora Clarice Claudino da Silva pediu a compreensão de todos para que o valor fosse devolvido da forma mais breve possível, ressaltando que o Tribunal está passando por um momento desafiador.
Conclusão
Importante acompanhar o desenrolar dos fatos, mas o episódio serve para vermos, na prática, o princípio da moralidade administrativa sendo utilizado como fundamento para a revogação de um pagamento feito de forma, no mínimo, questionável.
Ótimo tema para provas de direito constitucional e direito administrativo.
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