Em dezembro de 2024, uma decisão que chegou ao fim, diga-se, transitou em julgado, trouxe uma discussão sobre os limites da responsabilidade civil do Estado e a responsabilização pessoal de agentes públicos.
O que aconteceu?
Um procurador do Ministério Público de Goiás foi condenado ao pagamento de R$90 mil em danos morais (valor atualizado) ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, por tê-lo chamado de “maior laxante do Brasil” durante uma entrevista para uma rádio em 2018.
Ele disse o seguinte:
“Nós temos o caso do Gilmar Mendes, que é considerado o maior laxante do Brasil. Ele solta todo mundo, sobretudo os criminosos de colarinho branco. Então, nós temos esse problema no Judiciário, mas nós temos uma legislação horrorosa”, disse o procurador na entrevista, que complementou.
“Ele solta, inclusive, contra a lei. Ele cria sua própria lei. Aliás, o Gilmar, eu não sei como ele é ministro do Supremo ainda. Agora ministro do Supremo não pode ser investigado por corrupção?”
Em resumo, na entrevista, o Procurador fez uma referência jocosa aos habeas corpus concedidos por Gilmar Mendes a investigados pela operação Lava Jato.
Em síntese, ele queria referir que o Ministro “solta todo mundo”.
Mas, peraí, professor. A gente vai discutir o que aqui?
- Quando um agente público profere declarações ofensivas, como determinar quem deve responder pelos danos causados?
- Não seria o Estado que deveria ser condenado?
- Digo, é possível que um cidadão, entre com uma ação indenizatória de danos morais diretamente contra um servidor público?
Para responder a esta questão, vamos antes compreender a evolução e os fundamentos da responsabilidade civil do Estado no ordenamento jurídico brasileiro.
A evolução histórica da responsabilidade civil do Estado
A responsabilidade civil do Estado percorreu um longo caminho até chegar ao modelo atual.
Inicialmente, vigorava a teoria da irresponsabilidade estatal, sintetizada na máxima “the king can do no wrong”. O Brasil, diferentemente de outros países, nunca adotou formalmente esta teoria.
Posteriormente, desenvolveram-se as seguintes teorias (vamos fazer um quadro para esquematizar, porque isso adora cair em provas):
Teoria da responsabilidade com previsão legal
- O Estado só respondia em casos expressamente previstos em lei
- Sistema muito restritivo e insuficiente
Teoria civilista (responsabilidade subjetiva)
- Equiparação do Estado ao particular
- Necessidade de demonstração de culpa ou dolo
- Divisão entre atos de império e atos de gestão
Em síntese, o Estado só respondia se houvesse culpa ou dolo.
Teoria da culpa do serviço (faute du service)
- Evolução da teoria subjetiva
- Dispensa da identificação do agente causador
- Três modalidades: serviço não prestado, mal prestado ou prestado com atraso
Aqui, perceba, ele não quer saber quem foi o agente causador, o que era necessário na teoria civilista.
Teoria da responsabilidade objetiva (adotada atualmente)
- Dispensa do elemento culpa
- Baseada no risco administrativo
- Adotada pelo Brasil desde a Constituição de 1946
Aqui, não precisamos olhar para o elemento culpa, mas o principal é que adotamos o “risco administrativo”, você sabe o que é isso?
Antes, calma, a fonte do nosso conteúdo é o material TOP do Estratégia, se você é aluno do professor Rodolfo, veja aqui o link da aula.
Base constitucional – Teoria do Risco Administrativo
O art. 37, §6º da Constituição Federal estabelece a responsabilidade objetiva do Estado, adotando a teoria do risco administrativo. Esta teoria se fundamenta em dois pilares principais:
Teoria do risco administrativo:
- O Estado assume riscos inerentes à sua atividade
- Benefícios e prejuízos devem ser socialmente distribuídos
- Admite excludentes de responsabilidade, então, por exemplo, caso haja “culpa exclusiva da vítima, culpa exclusiva de terceiro, caso fortuito ou força maior”, não há responsabilização.
Por exemplo, recentemente, o STF decidiu que não há dever de indenizar quando adia-se a prova de concurso público organizado pelo Estado do Paraná em razão da COVID-19, por que seria um “caso fortuito/força maior”:
Durante a pandemia de COVID-19, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) suspendeu, horas antes do início, as provas de um concurso público para a Polícia Civil do Estado do Paraná. Em consequência, diversos candidatos ajuizaram ações solicitando indenização pelos danos causados pelo adiamento. O STF afirmou que os candidatos não têm direito de serem indenizados. Para a Corte, o adiamento foi uma medida de biossegurança para mitigar os riscos à saúde pública no contexto de uma emergência sanitária imprevisível. A responsabilidade objetiva do Estado, fundamentada no art. 37, §6º, da Constituição, exige dano, ação estatal e nexo de causalidade, os quais são rompidos em situações de força maior, como a pandemia. Assim, o STF reconheceu a legalidade das medidas restritivas adotadas durante a crise sanitária, descartando o dever de indenizar candidatos por danos alegados. Tese fixada pelo STF:O adiamento de exame de concurso público por motivo de biossegurança relacionado à pandemia do COVID-19 não impõe ao Estado o dever de indenizar. STF. Plenário. RE 1.455.038/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 06/11/2024 (Repercussão Geral – Tema 1.347) (Info 1157).
Claro, nós também temos exceções, em que o ordenamento adota a teoria do risco integral (danos nucleares), mas não é o caso agora de explicarmos isso.
Teoria da dupla garantia
Apesar de o Min. Marco Aurélio não ter mencionado isso expressamente em seu voto, temos uma posição cunhada no meio jurídico como “teoria da dupla garantia”.
Essa expressão foi cunhada pelo então Min. Carlos Ayres Britto, no RE 327904, julgado em 15/08/2006:
O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, é em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. STF. 1ª Turma. RE 327904, Rel. Min. Carlos Britto, julgado em 15/08/2006.
Ou seja, uma vítima somente poderá ajuizar a ação contra o Estado (Poder Público). Se este for condenado, poderá acionar o servidor que causou o dano em caso de dolo ou culpa.
O ofendido não poderá propor a demanda diretamente contra o agente público.
Da leitura do § 6º do art. 37 da CF/88, é possível perceber que o dispositivo consagrou duas garantias:
- a primeira, em favor do particular lesado, considerando que a CF/88 assegura que ele poderá ajuizar ação de indenização contra o Estado, que tem recursos para pagar, sem ter que provar que o agente público agiu com dolo ou culpa;
- a segunda garantia é em favor do agente público que causou o dano. A parte final do § 6º do art. 37, implicitamente, afirma que a vítima não poderá ajuizar a ação diretamente contra o servidor público que praticou o ato. Este servidor somente pode ser responsabilizado pelo dano se for acionado pelo próprio Estado, em ação regressiva, após o Poder Público já ter ressarcido o ofendido.
Esse já foi o pensamento do STF:
A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
STF. Plenário. RE 1027633/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 14/8/2019 (repercussão geral) (Info 947).
Ok, mas e o caso em análise: por que não se aplica a responsabilidade estatal? Por que Gilmar Mendes não ingressou com uma ação contra o Estado ao invés de ser diretamente contra o Procurador?
Perceba, no caso do procurador de Goiás, dois elementos são fundamentais para compreender a não aplicação da responsabilidade civil do Estado:
Ausência de nexo funcional *
- As declarações foram feitas em contexto pessoal
- Não havia relação direta com as atribuições do cargo
- O programa de rádio não constituía atividade institucional
*o Procurador não estava trabalhando, no exercício da função
Natureza da conduta
- Manifestação de opinião pessoal
- Ausência de relação com atos processuais
- Extrapolação dos limites funcionais
Em outras palavras, a teoria da dupla garantia, somente é aplicável apenas quando há nexo funcional, servindo para proteger tanto o cidadão quanto o servidor, aqui, temos uma exceção, pois ela não se aplica a atos pessoais do agente.
Logo, aprenda, existem situações em que apesar de ser “agente público” o servidor pode responder pessoalmente pelos danos causados.
Aqui, no caso concreto, ele não estava no exercício da função.
Como o tema já caiu em provas:
Prova: FGV – 2022 – Prefeitura de Manaus – AM – Advogado
Fernando, servidor público do Município Alfa, conduzia veículo oficial em via pública, imprimindo velocidade bem superior à permitida. Em razão da conduta culposa por imprudência, Fernando abalroou o carro de Moacir, que sofreu danos materiais. Moacir ajuizou ação indenizatória em face do Município Alfa, e obteve sentença, que acabou de transitar em julgado, com a procedência do pedido.
Observado o texto constitucional e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, com intuito de ser ressarcido pelo prejuízo que sofreu, o Município Alfa deve ajuizar ação regressiva em face de Fernando, com base em sua responsabilidade civil
a) subjetiva, pois o agente público tem o dever de ressarcir os cofres públicos independentemente da comprovação de ter agido com culpa ou dolo, incidindo no caso narrado a teoria do risco administrativo que dispensa a comprovação do elemento subjetivo para fins de ressarcimento ao erário.
b) subsidiária, pois o agente público tem o dever de ressarcir o erário municipal, independentemente de ter agido com culpa ou dolo, incidindo no caso narrado a teoria da dupla garantia: a primeira para o particular Moacir que teve assegurada a responsabilidade em face do Município; e a segunda para o servidor Fernando, que somente responderá perante o ente público.
c) objetiva, pois o agente público tem o dever de ressarcir o erário municipal, independentemente de ter agido com dolo ou culpa, incidindo no caso narrado a teoria do risco administrativo que dispensa a comprovação do elemento subjetivo para fins de ressarcimento ao erário.
d) subjetiva, pois o agente público tem o dever de ressarcir o erário municipal, porque agiu com culpa, incidindo no caso narrado a teoria da dupla garantia: a primeira para o particular Moacir que teve assegurada a responsabilidade objetiva, não necessitando comprovar dolo ou culpa de Fernando; e a segunda para o servidor Fernando, que somente responderá perante o ente municipal.
e) objetiva, pois o agente público tem o dever de ressarcir o erário municipal, porque agiu com culpa, incidindo no caso narrado a teoria da dupla garantia: a primeira para o particular Moacir que teve assegurada a responsabilidade subjetiva, não necessitando comprovar dolo ou culpa de Fernando; e a segunda para o servidor Fernando, que somente responderá perante o ente municipal.
Gabarito: Letra D
Referências:
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