* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
O Ministério Público do Trabalho ajuizou ação civil pública na Justiça do Trabalho contra a montadora de automóveis BYD – Build Your Dreams e empreiteiras que prestavam serviços exclusivos para a marca.
Em dezembro de 20224, 220 trabalhadores chineses contratados para construir a planta industrial da BYD no município de Camaçari/BA foram encontrados em situação análoga à escravidão e vítimas de tráfico internacional de pessoas.
Alguns operários dormiam em camas sem colchões e tinham seus pertences pessoais misturados com materiais de alimentação. Havia poucos banheiros, que não eram separados por sexo. Em um dos alojamentos, foi identificado apenas um sanitário para uso de 31 pessoas, obrigando os trabalhadores a acordarem por volta das 4h da manhã para higiene pessoal, antes de iniciar a jornada de trabalho.
Irregularidades
Irregularidades apontadas pelo MPT:
- Ingresso dos trabalhadores de forma irregular no Brasil;
- Visto de trabalho para serviços especializados que não correspondiam às atividades efetivamente desenvolvidas na obra;
- Trabalhadores amontoados em alojamentos sem as mínimas condições de conforto e higiene;
- Presença de vigilância armada;
- Retenção de passaportes;
- Contratos de trabalho com cláusulas ilegais;
- Jornadas exaustivas;
- Ausência de descanso semanal; e
- Risco de acidentes por negligência às normas de saúde e segurança do trabalho.
Em decorrência de todas essas irregularidades encontradas, o MPT então pediu:
- Condenação da BYD e das outras duas empresas ao pagamento de R$ 257 milhões a título de danos morais coletivos;
- Pagamento de dano moral individual equivalente a 21 vezes o salário contratual, acrescido de um salário por dia a que o trabalhador foi submetido a condição análoga à de escravo;
- Quitação das verbas rescisórias devidas;
- Cumprimento das normas brasileiras de proteção ao trabalho;
- Não submissão dos trabalhadores a tráfico de pessoas e trabalho escravo;
- Multa de R$ 50 mil para cada item descumprido, multiplicado pelo número de trabalhadores prejudicados.
Tráfico de pessoas
A BYD foi acusada, além disso, de praticar tráfico de pessoas mediante falsas promessas de salário e fraude para a concessão de vistos em desconformidade com as normas brasileiras.
“Os depoimentos colhidos durante a inspeção revelam que houve falsas promessas de salário no ato do recrutamento; alguns trabalhadores afirmaram que não possuem contrato assinado, pois lhes foi prometido que teriam acesso aos contratos de trabalho e os assinariam assim que chegassem ao Brasil, o que não ocorreu.
Outros, no entanto, sequer conhecem as condições contratuais.”
Dias depois da constatação das irregularidades pelo Ministério Público do Trabalho, a BYD anunciou a rescisão imediata do contrato com a construtora terceirizada Jinjiang Construction.
Em nota, a empresa informou que tomou medidas imediatas para garantir condições dignas e direitos trabalhistas.
Por fim, o MPT propôs às empresas a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta. Isso não foi aceito, ocasionando o ajuizamento da ação civil pública trabalhista nº 0000449-07.2025.5.05.0134, que tramita na 5ª vara do Trabalho de Camaçari.
Análise jurídica
Claramente, a situação narrada pelo MPT pode ser enquadrada como análoga à escravidão, ou trabalho escravo contemporâneo.
Mas antes, vamos analisar pontos que podem se relacionar ao tema.
Legitimidade ativa do Ministério Público do Trabalho
O artigo 127, da CF, confere ao Ministério Público a competência para defender interesses sociais e individuais indisponíveis.
CF/88
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
E a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é firme no sentido de reconhecer que o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para ajuizar ação civil pública para tutelar interesses difusos, direitos coletivos e individuais homogêneos, desde que demonstrada relevância social da defesa de direitos assegurados constitucionalmente, o que se verificou no caso.
Conferir: ED-AIRR-213-47.2019.5.08.0016, 7ª Turma, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 14/06/2024.
Prescrição

Não se aplica a prescrição em relação ao trabalho escravo e tráfico de pessoas, haja vista que tais práticas ofendem gravemente o núcleo duro dos direitos humanos que o Estado Brasileiro se comprometeu a respeitar perante a comunidade internacional, motivo pelo qual, conforme entendimento já consolidado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras vitimados/sobreviventes são indisponíveis.
Reconhecimento do trabalho escravo
O código penal tipifica como crime de “Redução a condição análoga à de escravo” o fato de “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. A pena-base é de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Portanto, os elementos que caracterizam o crime de escravidão moderna são:
- Submissão a trabalhos forçados;
- Submissão a jornadas exaustivas;
- Sujeição a condições degradantes de trabalho; e
- Restrição de locomoção do trabalhador.
Não é necessária a cumulação de todos os quatro requisitos acima. Logo, basta um deles para a configuração do trabalho escravo.
Escravo contemporâneo é todo aquele submetido a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho ou que tenha seu direito de locomoção cerceado pelo empregador.
Há, ademais, a Instrução Normativa 2 do Ministério do Trabalho e Previdência, que dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela Auditoria-Fiscal do Trabalho nas situações elencadas, em especial os artigos 23 e 24:
Art. 23. Considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a:
I - trabalho forçado;
II - jornada exaustiva;
III - condição degradante de trabalho;
IV - restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; ou
V - retenção no local de trabalho em razão de:
a) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte;
b) manutenção de vigilância ostensiva; ou
c) apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Art. 24. Para os fins previstos no presente Capítulo:
I - trabalho forçado é aquele exigido sob ameaça de sanção física ou psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou no qual não deseje permanecer espontaneamente;
II - jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de natureza física ou mental que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados à segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social;
III - condição degradante de trabalho é qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho;
IV - restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida é a limitação ao direito fundamental de ir e vir ou de encerrar a prestação do trabalho, em razão de débito imputado pelo empregador ou preposto ou da indução ao endividamento com terceiros;
V - cerceamento do uso de qualquer meio de transporte é toda forma de limitação ao uso de meio de transporte existente, particular ou público, possível de ser utilizado pelo trabalhador para deixar local de trabalho ou de alojamento;
VI - vigilância ostensiva no local de trabalho é qualquer forma de controle ou fiscalização, direta ou indireta, por parte do empregador ou preposto, sobre a pessoa do trabalhador que o impeça de deixar local de trabalho ou alojamento; e
VII - apoderamento de documentos ou objetos pessoais é qualquer forma de posse ilícita do empregador ou preposto sobre documentos ou objetos pessoais do trabalhador.
Arcabouço normativo internacional relacionado ao trabalho escravo
No âmbito internacional, podemos citar algumas normas aplicáveis ao combate a escravidão contemporânea.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, sendo fonte dos sistemas de direitos humanos e o principal regramento de universalização da proteção do ser humano, dispõe, em seus artigos IV e XXIII, que:
Artigo 4
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo 23
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
Por conseguinte, a Convenção nº 105, da OIT, ratificada pelo Brasil, e promulgada pelo Decreto nº 58.822, de 14/07/1966, obrigam os países signatários a suprimir o trabalho forçado.
E com a assinatura da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) também foi reforçado o compromisso brasileiro de que “Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas”.
Por fim, o Brasil tem, desde 1995, o compromisso com a erradicação do trabalho escravo, tratando-se de uma política de Estado, e não de governo.
PEC do Trabalho Escravo
Em 2014, tivemos a promulgação da Emenda Constitucional nº 81, conhecida como PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco de propriedades rurais e urbanas que possuem trabalhadores submetidos à escravidão.
CF/88
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
Tráfico de pessoas
O tráfico de pessoas concretiza-se por meio de ações que caracterizam o recrutamento, o deslocamento ou acolhimento de pessoas.
Nos termos da legislação, configura-se por meio de ações voltadas a agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, utilizando-se de formas de coerção, como a força, fraude, engano, abuso, violência ou outras, com o propósito de explorá-las em condições de trabalho análogo ao de escravo, em todas as suas formas, ou para finalidades diversas tais como exploração sexual, remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo ou para fins de adoção ilegal.
Sob o viés da exploração laboral, traduz-se num ato complexo para tirar vantagem injusta do trabalho de uma pessoa. Consubstancia-se pela existência de condições de trabalho inconsistentes com a dignidade humana, particularmente duras e abusivas.
Geralmente o tráfico humano é praticado para fins de exploração sexual, trabalho escravo ou retirada de órgãos ou tecidos.
O que caracteriza o tráfico humano é a retirada da pessoa de seu ambiente (cidade, estado, país), ficando com sua liberdade de locomoção limitada e submetida a exploração (sexual, laboral, retirada de órgãos).
Obtém-se a limitação da liberdade de várias formas, em especial através da retenção de documentos, passaporte, celulares, agressões, ameaças psicológicas, risco de morte de familiares.
Nesse sentido, a dinâmica do tráfico de pessoas é a seguinte:

No tráfico para trabalho escravo, os aliciadores são chamados de “gatos”, e geralmente fazem propostas irrecusáveis de trabalho.
Conclusão
Infelizmente, ainda é comum encontrar trabalhadores submetidos a condição análoga à escravidão, também conhecida como escravidão contemporânea.
Estima-se que, de 1995 a 2023, foram encontrados 63.516 trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Por isso é imprescindível que o Estado brasileiro continue aplicando recursos e esforços no combate a essa praga social que ainda nos aflige, e acaba por ferir de morte a dignidade desses trabalhadores.
Tema relevante para provas de direito do trabalho, processo do trabalho, direito constitucional e direitos humanos.
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