*João Paulo Lawall Valle é Advogado da União (AGU) e professor de direito administrativo, financeiro e econômico do Estratégia carreira jurídica.
Entenda o caso
Uma determinada empresa de soluções em biotecnologia ajuizou uma ação judicial com objetivo de obter tutela jurisdicional que a autorizasse a importar sementes de cânhamo com THC de até 0,3%.
O cânhamo é uma planta pertencente à espécie cannabis sativa. Ela tem a especificidade de possuir baixo teor da substância tetrahidrocanabidiol (THC), conhecida por seus efeitos psicoativos e utilizada para fins recreativos. Em regra, o cânhamo não apresenta mais de 0,3% de THC por peso seco.
No âmbito da 1ª instância, o Poder Judiciário negou o pedido e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confirmou a negativa. A parte não se conformou com a decisão local. Por isso, interpôs Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça, levando à Corte Cidadão os seguintes argumentos centrais:
i. Esse tipo de cultivo não tem enquadramento na Convenção Única sobre Entorpecentes ou restrições nos acordos das Nações Unidas ou em leis de estados internacionais que permitem o cultivo da planta.
ii. A Anvisa já permite a importação de extrato de CBD por pessoas jurídicas que pretendem fabricar e comercializar produtos derivados de cannabis para fins medicinais, e as mercadorias são vendidas em território nacional sob valores elevados em decorrência dos entraves necessários à importação dos insumos.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em março de 2023, foi instaurado um Incidente de Assunção de Competência (IAC 16), com a realização de audiência pública sobre o tema, permitindo a participação de especialistas de diversos segmentos para que pudessem contribuir com informações técnicas, avaliações e opiniões para que chegassem à sessão de julgamento do processo.
Ao julgar o caso, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça considerou juridicamente possível a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo e comercialização do cânhamo industrial por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos.
Além disso, como a decisão foi proferida no âmbito de IAC, ela é de observância obrigatória pela Justiça de primeiro e segundo graus de todo o país.
Análise Jurídica
O Brasil é signatário da Convenção Única sobre Entorpecentes, internalizada pelo Decreto nº 54.216/1964. Tal Decreto impõe aos seus signatários a obrigação de adotar as medidas necessárias para impedir o uso indevido e o tráfico ilícito das fôlhas da plantas da canabis.
O Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) está previsto na Lei 11.343/2006. O Sisnad traz amplo rol de medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e estabelecendo normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas .
O que deve se considerar como droga no Brasil?
De acordo com a Lei 11.343/2006, drogas são as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União (artigo 1º, parágrafo).
Em âmbito infralegal, a RDC nº 327/2019 da ANVISA dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação. Essa RDC também estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais.
A referida RCD prevê o seguinte sobre os produtos de Cannabis:
Art. 4° Os produtos de Cannabis contendo como ativos exclusivamente derivados vegetais ou fitofármacos da Cannabis sativa, devem possuir predominantemente, canabidiol (CBD) e não mais que 0,2% de tetrahidrocanabinol (THC). Parágrafo único. Os produtos de Cannabis poderão conter teor de THC acima de 0,2%, desde que sejam destinados a cuidados paliativos exclusivamente para pacientes sem outras alternativas terapêuticas e em situações clínicas irreversíveis ou terminais.
Realizando uma interpretação sistemática da Lei 11.343/2006 e da RDC nº 327/2019 (ANVISA), o STJ entendeu que é lícito o manejo doméstico de cânhamo industrial (Hemp), uma vez que o teor de THC é inferior a 0,3%.
Nesse sentido, foi reconhecida como lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial. Isso vale para pessoas jurídicas para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos, atrelados à proteção do direito à saúde.
Vale ressaltar que a Lei de Drogas não veda o uso da cannabis que não cause dependência, ficando isto muito claro quando se faz a leitura do parágrafo único do artigo 1º. E este é exatamente o caso do cânhamo, dado que o teor de THC é inferior a 0,3%.
Importante destacar que o julgamento do STJ não versou sobre descriminalização da maconha, tampouco sobre o cultivo de todas as variedades da planta e para quaisquer fins, não havendo qualquer discussão sobre o uso recreativo da cannabis.
Assim, ao final do julgamento foi fixada a seguinte tese pelo STJ:
1 – Nos termos dos arts. 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial (Hemp), variedade da Cannabis com teor de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência; 2 – De acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964) e a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial (Hemp), não havendo, atualmente, previsão legal e regulamentar que autorize seu emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário; 3 – À vista da disciplina normativa para os usos médicos e/ou farmacêuticos da Cannabis, as normas expedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa (Portaria SVS/MS n. 344/1998 e RDC n. 327/2019) proibindo a importação de sementes e o manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as disposições da Lei n. 11.343/2006, não alcançando, em consequência, a variedade descrita no item I (cânhamo industrial - Hemp), cujo teor de THC é inferior a 0,3%; 4 – É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (Hemp) por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde, observada a regulamentação a ser editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa e pela União, no âmbito de suas respectivas atribuições, no prazo de 06 (seis) meses, contados da publicação deste acórdão; e 5 – Incumbe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa e à União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.
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