O caso em questão
O caso julgado pela 10ª Turma do TRF4 envolve uma segurada transgênero, identificada como C.G.S., que ajuizou ação contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) buscando a concessão de aposentadoria por idade.
A peculiaridade do caso reside no fato de que a autora, antes de requerer o benefício, havia obtido judicialmente a retificação de seu nome e gênero nos registros civis.
Detalhes do caso Data do requerimento administrativo: 13/04/2019 Idade da requerente na data do pedido: 60 anos Gênero registrado originalmente: Masculino Gênero retificado judicialmente: Feminino
O INSS negou o benefício administrativamente, considerando o gênero biológico da requerente (masculino) e não o gênero feminino com o qual ela se identifica e que foi juridicamente reconhecido.
Segundo as regras vigentes à época, a idade mínima para aposentadoria era de 65 anos para homens e 60 anos para mulheres.
A decisão do TRF4
O tribunal, por maioria, entendeu que, uma vez retificado o gênero nos registros civis por decisão judicial, o INSS deve promover a mesma retificação em seus cadastros, inclusive para fins de concessão de benefícios previdenciários.
Antes, lembre da decisão do STF:
O direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização.
Trata-se de novidade porque, anteriormente, a jurisprudência exigia a realização da cirurgia de transgenitalização.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/5/2017 (Info 18 – Edição Extraordinária).
Ainda sobre o assunto:
I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;
II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo ‘transgênero’;
III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;
IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.
STF. Plenário. RE 670422/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 15/8/2018 (Repercussão Geral – Tema 761) (Info 911).
Transgênero
Transgênero é o indivíduo que possui características físicas sexuais distintas das características psíquicas.
É uma pessoa que não se identifica com o seu gênero biológico.
A pessoa sente que ela nasceu no corpo errado. Ex: o menino nasceu fisicamente como menino, mas ele se sente como uma menina.
Assim, o transgênero tem um sexo biológico, mas se sente como se fosse do sexo oposto e espera ser reconhecido e aceito como tal.
Transexual
Da mesma forma, o transexual também possui características físicas sexuais distintas das características psíquicas. Ele também não se identifica com o seu gênero biológico.
Não existe ainda uma uniformidade científica, no entanto, segundo a posição majoritária, a diferença entre o transgênero e o transexual é a seguinte:
- transgênero: quer poder se expressar e ser reconhecido como sendo do sexo oposto, mas não tem necessidade de modificar sua anatomia;
- transexual: quer poder se expressar e ser reconhecido como sendo do sexo oposto e deseja modificar sua anatomia (seu corpo) por meio da terapia hormonal e/ou da cirurgia de redesignação sexual (transgenitalização).
Identidade de gênero
Significa a maneira como alguém se sente e a maneira como deseja que as demais pessoas reconheçam, independentemente do seu sexo biológico.
“A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento.
Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não-binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero, dois-espíritos, travesti, fa’afafine, gênero queer, transpinoy, muxe, waria e meti. Identidade de gênero é diferente de orientação sexual. Pessoas trans podem ter qualquer orientação sexual, incluindo heterossexual, homossexual, bissexual e assexual.”
(Nota Informativa das Nações Unidas)1
Se o transexual faz a cirurgia de transgenitalização, ele poderá alterar o prenome e o sexo/gênero nos assentos do registro civil?
SIM. O STJ já reconheceu essa possibilidade há muitos anos:
(…) A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. (…)
STJ. 4ª Turma. REsp 737.993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/11/2009.
É possível que o transexual altere seu nome e o gênero no assento de registro civil mesmo que não queira fazer a cirurgia de transgenitalização?
SIM. O STJ decidiu que:
O direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/5/2017 (Info 608).
Agora, vamos analisar os principais pontos da decisão do TRF4:
Irrazoabilidade do ato do INSS
O tribunal considerou irrazoável e desproporcional o ato do INSS que indeferiu o benefício desconsiderando a retificação de gênero já reconhecida judicialmente.
O relator, Desembargador Márcio Antônio Rocha, argumentou que não há base legal para o INSS se apegar ao sexo biológico do indivíduo uma vez que este tenha sido alterado nos registros civis.
Qual gênero considerar
Ficou estabelecido que o gênero a se considerar para fins previdenciários é aquele que consta na certidão de nascimento no momento do requerimento da aposentadoria.
No caso em questão, sendo a autora legalmente reconhecida como mulher e tendo 60 anos na data do requerimento, ela cumpria o requisito etário para a aposentadoria por idade.
Danos morais
A negativa do INSS foi considerada não apenas como causadora de danos materiais, mas também de danos morais.
O tribunal entendeu que a conduta do INSS, ao desconsiderar uma decisão judicial prévia sobre a identidade de gênero da autora, causou constrangimentos e sofrimentos que vão além do mero aborrecimento, ensejando indenização fixada em R$ 3.000,00.
Retroatividade do benefício
O tribunal determinou que o INSS deve conceder o benefício de aposentadoria por idade à autora com efeitos retroativos à data do requerimento administrativo (13/04/2019).
Fundamentação jurídica
A decisão do TRF4 baseou-se em uma ampla gama de fundamentos legais e jurisprudenciais:
Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88)
O tribunal entendeu que o reconhecimento da identidade de gênero é parte fundamental da dignidade humana.
Direito à igualdade e não-discriminação (art. 5º, caput, CF/88)
A decisão enfatizou que negar o benefício com base no gênero biológico original configuraria discriminação injustificada.
Jurisprudência do STF
O TRF citou os precedentes da ADI 4.275 e do RE 670.422, que reconheceram o direito à retificação de nome e gênero nos registros civis independentemente de cirurgia de redesignação sexual.
Decreto 8.727/2016
O Tribunal mencionou este decreto, que dispõe sobre o uso do nome social na administração pública federal, como indicativo da obrigação dos órgãos públicos de respeitar a identidade de gênero declarada.
Princípios de Yogyakarta
O tribunal fez referência a estes princípios internacionais sobre a aplicação da legislação de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.
Reflexos da decisão
Desse modo, esta decisão tem implicações significativas para as pessoas transgênero no âmbito previdenciário:
Diferença na idade mínima: no caso concreto, a diferença entre se considerar homem ou mulher para fins previdenciários resultou em uma antecipação de 5 anos na concessão do benefício (60 anos para mulheres vs. 65 anos para homens, conforme as regras vigentes à época).
Impacto financeiro: considerando que a autora tinha 60 anos em 2019, a decisão potencialmente garante a ela 5 anos adicionais de benefício, o que pode representar uma diferença substancial em termos de renda ao longo da vida.
Precedente para casos futuros: esta decisão estabelece um importante precedente para que outras pessoas transgênero possam reivindicar seus direitos previdenciários de acordo com sua identidade de gênero legalmente reconhecida.
Adaptação dos sistemas do INSS: a decisão implica que o INSS deverá adaptar seus sistemas e procedimentos para acomodar adequadamente as situações de segurados transgênero, respeitando as retificações de gênero realizadas judicialmente.
Considerações finais
Portanto, o caso julgado pelo TRF4 representa um marco importante na intersecção entre direitos previdenciários e direitos das pessoas transgênero.
Ao reconhecer o direito da autora à aposentadoria conforme seu gênero retificado, o tribunal não apenas garantiu seu direito individual, mas também estabeleceu um precedente que pode beneficiar muitas outras pessoas em situação semelhante.
A decisão ressalta a importância de uma abordagem holística dos direitos da personalidade, reconhecendo que se deve ter respeito à identidade de gênero em todas as esferas da vida, incluindo a previdenciária.
Ao mesmo tempo, levanta questões importantes sobre a necessidade de adaptação das políticas públicas e dos sistemas administrativos para lidar de forma adequada e respeitosa com as especificidades da população transgênero.
- Disponível em: <https://unfe.org/system/unfe-91-Portugese_TransFact_FINAL.pdf?platform=hootsuite)>. ↩︎
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