Indulto natalino como causa de extinção das penas dos responsáveis pelo massacre do Carandiru.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O Tribunal de Justiça de São Paulo extinguiu todas as penas dos 74 policiais militares condenados pelo massacre do Carandiru, ocorrido na capital paulista em outubro de 1992.
Relembre o caso
O massacre do Carandiru deixou 111 detentos mortos durante uma rebelião no pavilhão 9 da extinta Casa de Detenção de São Paulo, e resultou na condenação dos policiais militares em júri popular, com penas que variavam de 48 a 632 anos de prisão.
No primeiro julgamento, em 2001, o coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a operação, foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 prisioneiros do complexo penitenciário.
Após, seguiram-se outros julgamentos, que foram desmembrados em quatro partes, ao fim das quais 74 policiais foram condenados pelas 111 mortes a penas que variavam de 48 a 624 anos de prisão.
A defesa apelou, buscando a anulação das condenações, enquanto o MP pleiteou a perda dos cargos públicos dos condenados.
Ao analisar os recursos, o STJ manteve as decisões do Tribunal do Júri, sustentando que havia provas suficientes para embasar tanto a acusação quanto a defesa, e que a decisão dos jurados não foi contrária às provas apresentadas.
A Casa de Detenção foi desativada em 2002, e a área onde a penitenciária funcionava deu lugar ao Parque da Juventude, à Escola Técnica Estadual de Artes e à Escola Técnica Estadual Parque da Juventude.
Por que as penas foram extintas?
Em 2022, o então Presidente da República, Jair Bolsonaro, por meio do decreto nº 11.302/2022, concedeu indulto natalino a agentes de segurança condenados por crimes ocorridos há mais de 30 anos.
Você sabe o que é o indulto natalino? Veja só:
Indulto natalino
É uma prerrogativa do Presidente da República que, por meio de decreto, perdoa as penas de condenados ou presos, desde que preenchidos determinados requisitos (portanto, não é automático). É publicado próximo do Natal, e tem fins humanitários, além de ajudar a desafogar o sistema prisional.
Fundamentos constitucionais e requisitos para concessão do indulto
A competência para a prática do indulto está fundamentada no artigo 84, XII, da Constituição Federal.
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: ... XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei; CF/88
Os condenados que não preencham os requisitos para serem beneficiados com o indulto poderão ter a pena comutada (reduzida), desde que tenham cumprido 1/4 da pena se não reincidentes e 1/3 se reincidentes.
Não podem ser beneficiados os condenados que cumprem pena pelos crimes de tortura, terrorismo, tráfico de entorpecentes e drogas afins, e os condenados por crime hediondo (após a edição da Lei Nº 8.072/90).
O STJ tem entendimento de que o indulto natalino só pode ser concedido a quem foi condenado até a publicação do decreto. Conferir HC 877.860.
Segundo a Corte, o indulto deve ser interpretado de forma restritiva, não sendo possível ao Poder Judiciário exigir condições não previstas no decreto nem ampliar indevidamente o seu alcance, sob risco de usurpar a competência constitucional do presidente da República.
O entendimento foi firmado pela sexta turma, ao julgar habeas corpus impetrado contra o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que não admitiu a incidência do indulto previsto no Decreto 11.302/2022 em favor de um preso.
O ministro relator, Sebastião Reis Júnior, ressaltou que o indulto é concedido às pessoas condenadas. Ou seja, que já se submeteram à jurisdição penal e contra si tiveram pronunciada a culpa, não havendo menção para casos futuros – nem poderia haver.
“A vigência para casos futuros invadiria o exercício do Poder Legislativo, pois permitiria ao presidente da República inovar no ordenamento jurídico, tornando sem efeito inúmeros tipos penais, criando hipóteses de abolitio criminis e igualando o decreto de clemência presidencial à lei”
Indulto natalino x Saída temporária
Importante também diferenciar indulto natalino da saída temporária especial (ou saidão).
- Indulto: Extingue a pena do beneficiário.
- Saída temporária (saidão): acarreta apenas a saída temporária do detento em datas comemorativas, devendo regressar ao sistema carcerário após o prazo final estabelecido.
No quadro abaixo, explicaremos melhor o que é a saída temporária:
“As saídas especiais ou saidões, como são conhecidos popularmente, estão fundamentados na Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) e nos princípios nela estabelecidos. Geralmente ocorrem em datas comemorativas específicas, tais como Natal, Páscoa e Dia das Mães, para confraternização e visita aos familiares. Nos dias que antecedem tais datas, o Juiz da Vara de Execuções Penais edita uma portaria que disciplina os critérios para concessão do benefício da saída e as condições impostas aos apenados, como o retorno ao estabelecimento prisional no dia e hora determinados.
O benefício visa à ressocialização de presos, através do convívio familiar e da atribuição de mecanismos de recompensas e de aferição do senso de responsabilidade e disciplina do reeducando. É concedido apenas aos que, entre outros requisitos, cumprem pena em regime semiaberto (penúltimo estágio de cumprimento da pena) com autorização para saídas temporárias e aos que têm trabalho externo implementado ou deferido, sendo que neste caso é preciso que já tenham usufruído de pelo menos uma saída especial nos últimos 12 meses.
O acompanhamento dos presos durante o saidão fica a cargo da Secretaria de Segurança Pública, que encaminha lista nominal com foto de todos os beneficiados para o comando das Polícias Civil e Militar, a fim de que os mesmos possam ser identificados caso seja necessário. Além disso, agentes do sistema prisional fazem visitas aleatórias às residências dos presos para conferir o cumprimento das determinações impostas.
Não têm direito à saída especial os custodiados que estejam sob investigação, respondendo a inquérito disciplinar ou que tenham recebido sanção disciplinar.”
O indulto natalino no caso do massacre do Carandiru
Pois bem. Voltando para o caso do Carandiru, o órgão especial do TJ/SP validou o indulto concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro a policiais militares envolvidos no massacre. A decisão rejeitou arguição de inconstitucionalidade levantada pelo MP/SP contra o artigo 6º do decreto presidencial nº 11.302/22, que concedeu o indulto natalino (conferir o acórdão do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade de nº 0001721-84.2023.8.26.0000).
Art. 6º Será concedido indulto natalino também aos agentes públicos que integram os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática. Parágrafo único. O disposto no caput aplica-se, ainda, às pessoas que, no momento do fato, integravam os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição, na qualidade de agentes públicos. Decreto nº 11.302/22
Decisão Judicial e Reconhecimento da Constitucionalidade
Após o reconhecimento da constitucionalidade do indulto emitido pelo então presidente Bolsonaro, o TJSP julgou a apelação criminal dos condenados (0007473-49.2014.8.26.0001), extinguindo, de uma vez por todas, a pena do militares envolvidos na tragédia do Carandiru, haja vista que o Colegiado que julgou a apelação criminal estava vinculado ao decidido pelo órgão especial. Ou seja, deveria, de fato, aplicar o indulto natalino, com a consequente extinção das penas.
O decreto de indulto veda o perdão para aqueles que cometeram crimes hediondos. Ocorre que o homicídio qualificado só foi classificado como crime hediondo em 1994, com a publicação da Lei nº 8.930/1994.
Como o massacre do Carandiru ocorreu em 1992, os militares puderam ser beneficiados com a medida.
A ementa da apelação criminal, que acabou por extinguir as penas, está assim descrita:
APELAÇÃO CRIMINAL Homicídios qualificados pelo emprego de recurso que dificultou a defesa das vítimas Mortes ocorridas em operação que visava a conter rebelião de detentos no Pavilhão Nove do antigo Complexo Penitenciário do Carandiru Condenações pelo Tribunal do Júri ratificadas pelo e. Superior Tribunal de Justiça Análise da dosimetria das penas prejudicada Indulto com fundamento no Decreto Presidencial n. 11.302/22 julgado constitucional pelo c. Órgão Especial deste e. Tribunal de Justiça Extinção da punibilidade reconhecida Desnecessidade de enumeração de dispositivos para fins de prequestionamento Recursos defensivos parcialmente providos, com reconhecimento da extinção das penas corporais pelo indulto.
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