ANPP e continuidade delitiva: STJ fixa critérios para aferição da pena mínima

ANPP e continuidade delitiva: STJ fixa critérios para aferição da pena mínima

Prof. Gustavo Cordeiro

Introdução: uma decisão que muda o jogo para a defesa criminal

O Superior Tribunal de Justiça acaba de proferir uma das mais importantes decisões sobre o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) desde a sua criação pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime). No julgamento de um processo pela Quinta Turma (Info 867/STJ, j. 7/10/2025), o STJ enfrentou uma questão que vinha gerando controvérsias nos tribunais de todo o país: como calcular a pena mínima quando há crimes em continuidade delitiva para fins de admissibilidade do ANPP?

A resposta do tribunal é clara e favorável à defesa: deve-se utilizar a pena mínima em abstrato, aplicando as majorantes em sua fração mínima (1/6 para continuidade delitiva), e não fazer cálculos prospectivos de “pena hipotética”. Essa orientação dialoga diretamente com a vedação à prescrição em perspectiva (Súmula 438/STJ) e com a jurisprudência sobre sursis processual (Súmulas 243/STJ e 723/STF).

Para candidatos a concursos de carreiras criminais — Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Delegado —, este julgado é leitura obrigatória. Além de consolidar entendimento sobre um dos institutos mais cobrados em provas, a decisão traz reflexões profundas sobre interpretação teleológica, analogia in bonam partem e vedação ao uso de penas hipotéticas.

O Acordo de Não Persecução Penal: breve contextualização

O ANPP foi introduzido no ordenamento jurídico pelo art. 28-A do CPP, acrescentado pela Lei nº 13.964/2019. Trata-se de um mecanismo de justiça penal consensual que permite ao Ministério Público propor ao investigado, antes do oferecimento da denúncia, o cumprimento de determinadas condições em troca do arquivamento da investigação.

Requisitos objetivos do ANPP

O art. 28-A, caput, do CPP estabelece como requisitos objetivos:

  1. Infração penal sem violência ou grave ameaça
  2. Pena mínima inferior a 4 anos
  3. Confissão formal e circunstanciada da infração (requisito subjetivo)

O §1º do mesmo artigo dispõe:

"Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto."

É justamente a interpretação desse parágrafo que gerou a controvérsia decidida pelo STJ.

A controvérsia: pena mínima abstrata ou “pena hipotética”?

O problema da continuidade delitiva

Imagine a seguinte situação: o investigado praticou três furtos simples (art. 156, caput, CP) em condições de tempo, lugar e modo de execução semelhantes, configurando continuidade delitiva (art. 71, caput, CP).

Pena do furto simples: reclusão, de 1 a 4 anos, e multa.

Como calcular a pena mínima para fins de admissibilidade do ANPP?

Duas interpretações possíveis

🟠 Tese 1 (restritiva – defendida por alguns membros do MP):

Aplica-se a pena base de 1 ano, acrescida da majorante da continuidade em sua fração máxima (2/3), resultando em 1 ano e 8 meses. Como há três crimes, multiplica-se: 5 anos. Logo, inadmissível o ANPP.

🟠 Tese 2 (favorável ao réu – adotada pelo STJ):

Aplica-se a pena base de 1 ano, acrescida da majorante da continuidade em sua fração mínima (1/6), resultando em 1 ano e 2 meses. Como está abaixo de 4 anos, é admissível o ANPP.

O STJ, por empate na Quinta Turma (voto de desempate do Min. Ribeiro Dantas), acolheu a tese 2.

Fundamentos da decisão do STJ

Interpretação teleológica e função despenalizadora

continuidade delitiva

O STJ partiu de uma premissa fundamental: o ANPP possui função despenalizadora, ou seja, busca reduzir a intervenção do Estado na esfera de liberdade dos indivíduos, privilegiando soluções consensuais e evitando processos desnecessários.

Essa finalidade exige interpretação teleológica e sistemática do art. 28-A do CPP, em consonância com outros institutos despenalizadores do ordenamento, especialmente o sursis processual (art. 89 da Lei 9.099/95).

Analogia com o sursis processual

O STJ fez um importante paralelo com a jurisprudência consolidada sobre suspensão condicional do processo:

Embora a Lei 9.099/95 seja omissa quanto à continuidade delitiva, os tribunais superiores fixaram que, para fins de admissibilidade do sursis processual, deve-se somar a pena mínima da infração mais grave com o acréscimo de 1/6 (fração mínima da continuidade).

Esse entendimento está cristalizado na Súmula 243/STJ:

"O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano."

E na Súmula 723/STF:

"Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano."

A Quinta Turma do STJ aplicou analogia in bonam partem, estendendo esse raciocínio ao ANPP.

Vedação à “pena hipotética” e Súmula 438/STJ

O STJ foi enfático ao rejeitar cálculos prospectivos ou “penas hipotéticas” na fase de admissibilidade do ANPP:

"Admitir o cálculo 'em perspectiva', como pretende o Ministério Público, importaria em introduzir no exame de admissibilidade do ANPP raciocínios análogos à extinta figura da chamada prescrição em perspectiva, cuja instrumentalização pelo intérprete fora severamente rechaçada pela jurisprudência que culminou na consolidação da Súmula n. 438/STJ."

A Súmula 438/STJ estabelece:

"É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal."

O raciocínio é cristalino: se não é possível usar “penas hipotéticas” para reconhecer prescrição, também não se pode usá-las para afastar a admissibilidade do ANPP. Ambas as situações envolvem cálculos prospectivos que geram insegurança jurídica e discricionariedades indefinidas.

Separação de funções: admissibilidade x dosimetria

O acórdão destacou a importância de separar duas fases distintas:

🔶 Fase de admissibilidade do ANPP: utiliza-se a pena mínima em abstrato, com majorantes na fração mínima. É um juízo objetivo, de triagem.

🔶 Fase de dosimetria (eventual sentença condenatória): o juiz faz a individualização completa da pena, considerando circunstâncias judiciais, atenuantes, agravantes e causas de aumento/diminuição nas frações adequadas ao caso concreto.

Confundir essas fases seria permitir que o exame preliminar de admissibilidade se converta em “ensaio prospectivo de dosimetria”, o que violaria a lógica do sistema.

Interpretação do art. 28-A, § 1º, do CPP

O § 1º do art. 28-A dispõe que “serão consideradas as causas de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto“. Essa expressão gerou dúvidas: significa que se deve fazer um cálculo concreto da pena?

A Resposta do STJ: Não

Segundo o tribunal, a norma não autoriza cálculos prospectivos. A interpretação correta é:

🔸 Causas de aumento: aplicar a fração mínima (ex: 1/6 na continuidade delitiva)

🔸 Causas de diminuição: aplicar a fração máxima (ex: 2/3 na tentativa)

Essa é a única forma de se chegar à menor pena possível em abstrato, que é exatamente o que o legislador quis ao exigir “pena mínima inferior a 4 anos”.

Teses fixadas pelo STJ

A decisão consolidou três teses fundamentais:

TESE 1: A pena mínima em abstrato, considerando as frações mínimas das majorantes e máximas das atenuantes, deve ser utilizada como critério para aferição da elegibilidade ao ANPP.
TESE 2: A continuidade delitiva não impede a celebração do acordo de não persecução penal, desde que a pena mínima resultante não ultrapasse o limite de quatro anos.
TESE 3: É indevido utilizar projeções de "pena hipotética" para afastar, em sede de admissibilidade, o exame do ANPP, em coerência com a vedação sumulada à prescrição em perspectiva (Súmula n. 438/STJ).

Quadro comparativo: sursis processual x ANPP

AspectoSursis ProcessualANPP
Previsão legalArt. 89, Lei 9.099/95Art. 28-A, CPP
Limite de penaMínima não superior a 1 anoMínima inferior a 4 anos
Continuidade delitivaSoma pena + 1/6 (Súmulas 243/STJ e 723/STF)Soma pena + 1/6 (analogia)
MomentoApós oferecimento da denúnciaAntes do oferecimento da denúncia
NaturezaSuspensão do processoEvita o processo (justiça consensual)
ConfissãoNão exigidaExigida (formal e circunstanciada)

Questão objetiva de concurso (estilo CESPE/FCC)

Enunciado:

João foi investigado pela suposta prática de três crimes de furto simples (art. 155, caput, CP - pena: reclusão, de 1 a 4 anos, e multa) em continuidade delitiva. O Ministério Público se recusou a oferecer o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), sob o argumento de que a pena mínima, somando-se os três crimes e aplicando-se a majorante da continuidade delitiva em sua fração máxima (2/3), ultrapassaria os 4 anos exigidos pelo art. 28-A do CPP. A defesa recorreu da decisão. Com base na jurisprudência do STJ, assinale a alternativa correta:

(A) O MP está correto, pois o art. 28-A, § 1º, do CPP exige a consideração das causas de aumento aplicáveis ao caso concreto, o que autoriza o cálculo da pena em sua extensão máxima.

(B) O ANPP é inadmissível em crimes em continuidade delitiva, por analogia ao entendimento consolidado nas Súmulas 243/STJ e 723/STF sobre o sursis processual.

(C) A defesa tem razão, pois a aferição da elegibilidade ao ANPP deve considerar a pena mínima em abstrato, aplicando-se as majorantes em sua fração mínima (1/6), em analogia ao sursis processual.

(D) O cálculo da pena para fins de ANPP deve considerar as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, permitindo ao MP fazer uma dosimetria prospectiva.

(E) A continuidade delitiva impede automaticamente o ANPP, independentemente do resultado do cálculo da pena mínima.

Gabarito: Letra C.

Explicação:

(C) CORRETA. Segundo o STJ (Info 867, Quinta Turma, j. 7/10/2025), a pena mínima em abstrato, considerando as frações mínimas das majorantes (1/6 na continuidade delitiva), deve ser utilizada como critério para aferição da elegibilidade ao ANPP. Essa interpretação decorre da analogia in bonam partem com o sursis processual (Súmulas 243/STJ e 723/STF) e da vedação ao uso de “penas hipotéticas” (Súmula 438/STJ). No caso, somando 1 ano (furto simples) + 1/6 (continuidade) = 1 ano e 2 meses, que está dentro do limite de 4 anos.

(A) INCORRETA. Embora o § 1º do art. 28-A exija considerar as causas de aumento, isso não autoriza cálculo prospectivo em fração máxima. A interpretação sistemática e teleológica determina o uso da fração mínima para se chegar à “menor pena possível em abstrato”.

(B) INCORRETA. Ao contrário, a analogia com as Súmulas 243/STJ e 723/STF é favorável ao réu: assim como no sursis processual aplica-se o acréscimo mínimo de 1/6, o mesmo raciocínio vale para o ANPP. A continuidade delitiva não impede o acordo, desde que a pena mínima resultante não ultrapasse 4 anos.

(D) INCORRETA. O exame de admissibilidade do ANPP não se confunde com dosimetria. As circunstâncias judiciais do art. 59 do CP são aplicadas apenas na fase de individualização da pena (eventual sentença condenatória), não na fase preliminar de triagem.

(E) INCORRETA. A continuidade delitiva não impede automaticamente o ANPP. O STJ foi expresso: “A continuidade delitiva não impede a celebração do acordo de não persecução penal, desde que a pena mínima resultante não ultrapasse o limite de quatro anos.”

Fechamento estratégico: o que você precisa memorizar

Grave estes pontos essenciais para sua prova:

ANPP com continuidade delitiva: aplica-se a fração mínima da majorante (1/6), por analogia às Súmulas 243/STJ e 723/STF sobre sursis processual

Vedação à pena hipotética: não se pode fazer cálculos prospectivos para afastar o ANPP, em coerência com a Súmula 438/STJ

Interpretação do art. 28-A, § 1º, CPP: “causas aplicáveis ao caso concreto” significa majorantes na fração mínima e atenuantes na fração máxima

Separação de fases: admissibilidade (pena abstrata) ≠ dosimetria (pena concreta)

Função despenalizadora: o ANPP deve receber interpretação teleológica favorável ao réu

Jurisprudência-chave: Info 867/STJ (Quinta Turma, 2025), Súmulas 243/STJ, 723/STF e 438/STJ

Esta decisão representa uma vitória da racionalidade jurídica e da defesa criminal. Mais do que isso, demonstra a importância de interpretar institutos despenalizadores à luz de sua finalidade constitucional: evitar processos desnecessários, reduzir o encarceramento e promover soluções consensuais e efetivas.


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