Em uma recente ocorrência em Cuiabá, policiais militares estão sendo investigados por abuso de autoridade. Eles teriam agredido e prendido um suspeito, um defensor público e um procurador do estado. O incidente ocorreu em um bar, onde o defensor público André Rossignolo e o procurador Daniel Gomes foram detidos enquanto tentavam intervir em uma abordagem policial.
Os relatos indicam que o acionamento da polícia ocorreu devido a um suspeito estar causando tumulto e assediando mulheres no local. Ao chegarem, os policiais utilizaram força excessiva para imobilizar o suspeito, o que levou o defensor público a começar a gravar a ação. Em resposta, os policiais apreenderam o celular do defensor, algemaram-no e o colocaram em um camburão, juntamente com o procurador que tentava mediar a situação.
Prerrogativas e direitos violados
A ação policial aparentemente (pelos vídeos divulgados em redes sociais) desrespeitou várias prerrogativas legais.
A Lei Orgânica da Defensoria Pública de Mato Grosso (LC 608/18) assegura aos defensores públicos o direito de atuar em locais de custódia e acolhimento, oferecendo atendimento jurídico permanente, independentemente de prévio agendamento ou autorização, inclusive sem procuração:
Art. 77, VII - atuar nos estabelecimentos penais, de internação de adolescentes e aqueles destinados à custódia ou ao acolhimento de pessoas, visando ao atendimento jurídico permanente dos menores infratores, presos e sentenciados, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, ainda que considerados incomunicáveis, competindo à administração do sistema penitenciário estadual reservar instalações seguras e adequadas aos seus trabalhos, franquear acesso a todas as dependências do estabelecimento, independentemente de prévio agendamento, fornecer apoio administrativo, prestar todas as informações solicitadas e assegurar o acesso à documentação dos menores, presos e internos, aos quais não poderá, sob fundamento algum, negar o direito de entrevista com os membros da Defensoria Pública do Estado; (Nova redação dada pela LC 608/18)
Isto é, o artigo 77, inciso VII, garante aos Defensores Públicos o direito de acessar tais locais para evitar abusos. Isso justifica a tentativa do defensor de registrar a ação policial e proteger o suspeito de violência excessiva.
De outro lado, no que tange à prisão do Defensor Público e do Procurador, cumpre alertar a possibilidade de violação às prerrogativas institucionais.
Por exemplo, a Lei Orgânica da Defensoria Pública da União, no seu artigo 44 (LC 80/1994), e a Lei Orgânica da Procuradoria da Fazenda Nacional (Lei 13.327/2016) estabelecem que defensores e procuradores só podem ser presos por ordem judicial, salvo em flagrante delito por crime inafiançável. E, ainda, deve-se comunicar imediatamente às autoridades superiores competentes sobre tal prisão:
“Art. 44. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União(...); II - não ser preso, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante, caso em que a autoridade fará imediata comunicação ao Defensor Público-Geral; Art. 38. São prerrogativas dos ocupantes dos cargos de que trata este Capítulo, sem prejuízo daquelas previstas em outras normas: IV - somente ser preso ou detido por ordem escrita do juízo criminal competente, ou em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade policial lavrará o auto respectivo e fará imediata comunicação ao juízo competente e ao Advogado-Geral da União, sob pena de nulidade;”
A ratio legis dessas leis são justamente proteger o Defensor Público e Procurador do Estado de prisões aparentemente ilegais e marcadas por perseguição política.
Dessa maneira, a prisão do defensor e do procurador, sem flagrante delito e sem ordem judicial, aparenta ser uma violação clara dessas prerrogativas.
Contexto Penal
Constitucionalmente, o artigo 5º, inciso III e X, da Constituição Federal, proíbe tratamentos desumanos ou degradantes, assegurando a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. O mesmo artigo, no inciso LXI, determina que ninguém pode ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.
Além disso, o Código Penal, em seu artigo 322, tipifica o abuso de autoridade, caracterizando-o como crime cometido por agente público que utiliza a força indevidamente, constrangendo ilegalmente a liberdade de terceiros.
Por fim, é cediço que a lei contra o abuso de autoridade (Lei nº 13.869/19) provocou profundos impactos na atuação das autoridades públicas brasileiras. Isso afetou em especial a atividade policial, tanto em função das diversas condutas que passaram a se enquadrar como criminosas quanto em virtude do enrijecimento de pena para tantas outras que já encontravam previsão típica em nosso ordenamento jurídico.
Dessa forma, além do contexto penal, caso se constate excesso na atividade policial, também é possível uma ação de danos morais em face do Estado. Outra possibilidade é a ação regressiva aos servidores que praticaram a abordagem, caso se verifique abuso na conduta.
Nessa linha, a investigação detida dos fatos torna-se necessária, como mostra a jurisprudência:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ABUSO DE AUTORIDADE. EXCESSO NA ABORDAGEM POLICIAL. DEVER DO ESTADO DE INDENIZAR. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM EXCESSIVO. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Só há responsabilidade civil do Estado, quando o ato praticado por policial no exercício da atividade configura excesso de atuação, já que o estrito cumprimento de dever legal é excludente da aludida responsabilidade. 2. Ainda que seja possível o uso da força física para conter os ânimos ou resistência em uma abordagem policial, é estritamente necessário que haja proporção no uso dessa força, de forma a impedir os excessos. 3. A indenização deve ser fixada na medida proporcional e razoável a minimizar a dor moral sofrida pelo autor, fisicamente agredido de forma grave, injusta e desproporcional, diante da atuação despreparada do policial militar. 4. No entanto, a condenação no valor de R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) se mostra exorbitante e desarrazoada. 5. Sentença reformada. Recurso parcialmente provido. (TJMT; AC 0009676-58.2015.8.11.0003; Primeira Câmara de Direito Público e Coletivo; Rel. Des. José Luiz Leite Lindote; Julg 10/06/2024; DJMT 19/06/2024)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E DA IMPRENSA LOCAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS SUPORTADOS PELO AUTOR EM VIRTUDE DE PRISÃO CONSIDERADA INDEVIDA. 1. Cerceamento de defesa. Inocorrência. Preliminar rejeitada. 2. Mérito. O autor foi investigado em inquérito policial que, posteriormente, foi arquivado, relativamente a ele, por ausência de prova da autoria do crime. Prisão temporária por um dia. Inexistência de má-fé, abuso de poder ou erro por parte da autoridade policial ou judiciária. Não configuração da hipótese de reconhecimento à justa indenização. Danos decorrentes da atividade policial e judiciária não compreendidos nas hipóteses de responsabilidade civil consagradas pelo artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. Em virtude das peculiaridades envolvidas no ato criminoso e nos elementos de prova coletados na investigação, outra atitude não restava aos policiais a não ser postular a prisão temporária e adotar as providências para tanto. Por outro lado, não se vislumbram arbitrariedade ou ilegalidade nas publicações veiculadas pela imprensa da região de Ribeirão Preto. Estas, ademais, não desbordaram de seu objetivo primordial de informar os leitores, sobretudo porque os fatos foram relatados tais como se sucederam. Pedido inicial julgado improcedente. Confirmação da sentença. Recurso não provido. (TJSP; AC 1029104-88.2022.8.26.0506; Ac. 17862616; Ribeirão Preto; Décima Segunda Câmara de Direito Público; Rel. Des. Osvaldo de Oliveira; Julg. 03/05/2024; DJESP 08/05/2024; Pág. 2409)
Investigação e responsabilização
Diante dos fatos apresentados, torna-se evidente investigar se houve abuso de autoridade por parte dos policiais, com violação das prerrogativas dos defensores e procuradores, bem como dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição.
A Defensoria Pública de Mato Grosso e a Corregedoria-Geral da Polícia Militar têm um papel crucial na investigação e responsabilização dos agentes envolvidos. Assim, pode-se assegurar a proteção dos direitos humanos e a manutenção da ordem jurídica.
Respeitar as prerrogativas dos profissionais do direito e garantir a integridade física e moral de todos cidadãos é essencial para a justiça e a democracia. O caso serve como um alerta para a importância da fiscalização rigorosa das ações policiais e da proteção dos direitos fundamentais.
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