Análise Jurídica – Cânticos racistas entoados por jogadores da Seleção Argentina no contexto do Direito Penal Brasileiro

Análise Jurídica – Cânticos racistas entoados por jogadores da Seleção Argentina no contexto do Direito Penal Brasileiro

Na última segunda-feira, na Flórida, EUA, jogadores da seleção argentina entoaram cânticos racistas durante a celebração da conquista do título da Copa América. O volante Enzo Fernández filmava a comemoração em uma live no Instagram, mas encerrou a transmissão ao perceber que os gritos racistas começavam a ser entoados.

O cântico dizia:

"Eles jogam pela França
mas são de Angola
que bom que eles vão correr
se relacionam com transexuais
a mãe deles é nigeriana
o pai deles cambojano
mas no passaporte: francês."

A música ganhou notoriedade durante a Copa do Mundo de 2022, sendo frequentemente entoada por torcedores argentinos.

A Argentina se tornou bicampeã da Copa América após vencer a Colômbia por 1 a 0 no domingo passado. A decisão teve um atraso de 75 minutos devido a uma grande confusão na entrada do estádio Hard Rock Stadium, onde muitos torcedores invadiram o local sem ingresso. Lautaro Martínez marcou o gol da vitória argentina.

Análise Jurídica

cânticos racistas_justiça

Se tais cânticos racistas fossem entoados no Brasil, a situação poderia ser enquadrada como crime, conforme o artigo 20 da Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. A redação do dispositivo é clara ao prever como crime a prática, indução ou incitação à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Tipificação Penal

Conforme o artigo 20 da Lei nº 7.716/89:

‘’Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa”.

Nesse sentido, sobre o emprego da palavra raça assinala Roberta Fragoso Menezes Kaufmann:

A palavra raça pode ser empregada nas mais diferentes maneiras. Pode ter um sentido de fenótipo, a revelar um conjunto de características físicas, como cor da pele, cor e textura do cabelo, cor e formato dos olhos, formato do nariz e espessura dos lábios. Pode, ainda, significar uma região específica do planeta, como por exemplo, quando se fala em raça africana, raça oriental, raça ocidental. Ou, além, pode ter um sentido biológico, como a reunião de pessoas em grupos de indivíduos que possuam características específicas e distintas dos outros grupos. Até o final do século XIX, os cientistas promoveram diversas tentativas de classificar biologicamente as pessoas em raças distintas. Mas como afirma o geneticista Cavalli-Sforza: “Os resultados, muitas vezes contraditórios, constituem um bom indício da dificuldade do empreendimento. Darwin compreendeu que a continuidade geográfica frustraria toda tentativa de classificar as raças humanas. Ele observou um fenômeno recorrente ao longo da história: diferentes antropólogos chegaram a contagens totalmente discrepantes do número de raças – de três a mais de cem” (CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca.2003: p. 37).

O interesse científico em classificar os homens em raças biologicamente distintas chocava-se com a mobilidade com que as características raciais mudavam. Nesse sentido, o geneticista Sérgio Pena explicou que a espécie humana é “demasiadamente jovem e móvel para ter se diferenciado em grupos tão distintos” (PENA, Sérgio et. al. 2000: p. 17-25). E, ainda que se quisesse fazer uma aproximação da quantidade de raças existentes no mundo, os números poderiam ultrapassar um milhão de raças distintas (CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. 2003: p. 52). Nessa óptica, o mapeamento do genoma humano confirmou a impossibilidade de divisão dos homens em raças.(…)

Na verdade, o conceito de raça subsiste, atualmente, porque, a despeito de não poder ser analisado sob o espectro biológico, permanece o interesse pela construção cultural do tema (Ver em FERREIRA, Nayara. (2007: p. 245). O fato de, biologicamente, não ser possível classificar as pessoas segundo as raças, não quer dizer que o conceito cultural de raça inexista. A importância da classificação advém do aspecto social, para estudarmos o modo como cada comunidade classifica seus indivíduos e analisarmos as razões que justificaram a opção pelos critérios eleitos em cada sociedade.[1]

Assim, tem-se que biologicamente não há distinções entre raças, porém o conceito cultural de raça existe.

No que tange ao racismo, entende-se que esta palavra limita a área de incidência da discriminação, ao passo que as manifestações preconceituosas são genéricas, podendo ser variadas envolvendo a raça, cor, idade, sexo, grupo social etc.

Segundo Guilherme de Souza Nucci, valendo-se dos ensinamentos de Christiano Jorge Santos: “cor é termo melhor utilizado para definição cromática de qualquer matéria, do que propriamente para distinção de pessoas, embora seja empregado para definição da pigmentação epidérmica dos seres humanos”[2].

Nucci diz que a etnia “é o grupo de pessoas que apresenta homogeneidade cultural ou lingüística[3]”. Em Ruanda, por exemplo, existem as etnias tutsis e hutus.

Ainda usando as lições do festejado autor, a religião “é a crença em uma existência sobrenatural ou em uma força divina, que rege o Universo e as relações humanas em geral, embora de um ponto de vista metafísico, com manifestações através de rituais ou cultos. Ex: religião católica” [4]

Por fim, Guilherme Nucci conceitua procedência nacional: “é a origem de nascimento de algum lugar do Brasil. Exemplos: paulista (nascido em São Paulo), carioca (nascido no Rio de Janeiro), gaúcho (originário do Rio Grande do Sul)”[5].

A conduta dos jogadores argentinos, ao entoarem cânticos com conteúdo racista e transmiti-los por meio de uma live em rede social, poderia ser tipificada como incitação à discriminação racial, uma vez que o cântico faz referências pejorativas a diversas nacionalidades e condições pessoais de indivíduos.

Análise do §2º da Lei 7.716/89

O §2º do artigo 20, com redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023, agrava a pena para crimes cometidos por intermédio dos meios de comunicação social, publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:

"§2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa”.

Então, se fosse no Brasil, ao transmitir os cânticos racistas via live no Instagram, o volante Enzo Fernández e os demais envolvidos poderiam ser enquadrados nesta previsão legal, acarretando uma pena mais severa devido ao uso de uma plataforma de mídia social, o que amplia o alcance e o potencial impacto discriminatório do ato.

Análise do §2º-A da Lei 7.716/89

Além disso, a recente inclusão do §2º-A ao artigo 20 pela Lei nº 14.532, de 2023, agrava a pena para crimes cometidos no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público:

§2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

Essa alteração legislativa visa a proteger ainda mais os ambientes coletivos, onde a disseminação de ideias discriminatórias pode ter um impacto amplificado. A presença de cânticos racistas em um evento esportivo, como a celebração de um título de futebol, se enquadraria nessa previsão legal, justificando a aplicação das penas mais severas previstas no §2º-A.

Doutrina

Segundo Rogério Greco, a tipificação penal das condutas discriminatórias visa não só punir comportamentos, mas também desencorajar a perpetuação de práticas sociais excludentes e degradantes (GRECO, 2014).

Ele, com efeito, ainda enfatiza que a discriminação racial afronta diretamente a dignidade da pessoa humana, sendo essencial a repressão penal como meio de salvaguarda dos direitos fundamentais (GRECO, 2014).

Guilherme de Souza Nucci também discorre, em seguida, sobre os crimes de discriminação, ressaltando que a criminalização dessas condutas é uma manifestação clara do compromisso do Estado com a erradicação de práticas que atentem contra a dignidade humana. Nucci sublinha que a discriminação, além de ferir direitos individuais, compromete a coesão social e a paz pública (NUCCI, 2021, p. 123).

Logo depois, nosso saudoso professor Luiz Flávio Gomes destaca a importância de uma interpretação sistemática e teleológica do artigo 20, integrando-o ao arcabouço dos direitos humanos. Assim, para Gomes, é essencial que o aplicador do direito compreenda o impacto social das práticas discriminatórias e adote uma postura proativa na proteção das vítimas de discriminação e preconceito (GOMES, 2019, p. 98).

Jurisprudência

A jurisprudência brasileira tem tratado com rigor casos de discriminação racial. Dessa forma, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm reiterado a importância de uma interpretação rigorosa do artigo 20, para coibir práticas discriminatórias.

  • STJ, RHC 70.881/SP: O tribunal decidiu que a liberdade de expressão não pode ser invocada como pretexto para a prática de atos discriminatórios, destacando a proteção dos direitos fundamentais de igualdade e dignidade (BRASIL, STJ, RHC 70.881/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 26/06/2018, DJe 01/08/2018).
  • STF, HC 82.424/RS: O STF firmou entendimento de que a prática de discriminação racial é incompatível com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, ressaltando a dignidade da pessoa humana como valor central (BRASIL, STF, HC 82.424/RS, Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 17/09/2003, DJ 19/03/2004).
  • STF, ADPF 186: Neste julgamento, o STF afirmou que políticas afirmativas são compatíveis com a Constituição Federal, destacando a necessidade de ações concretas para combater a desigualdade racial e promover a inclusão social (BRASIL, STF, ADPF 186, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 26/04/2012, DJe 20/10/2014).

Referência à transfobia no cântico

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou a aplicação da Lei 7.716/89 à homofobia é um marco significativo na proteção dos direitos humanos e na luta contra a discriminação no Brasil.

Assim, em uma análise jurídica detalhada, é possível compreender a profundidade e o impacto dessa decisão, considerando os princípios constitucionais e a evolução legislativa do país.

A Lei 7.716/89, originalmente destinada a punir a discriminação racial, foi interpretada pelo STF para incluir a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, equiparando a homofobia e a transfobia ao racismo.

A Corte baseou sua decisão no artigo 5º da Constituição Federal, que assegura a igualdade de todos perante a lei e proíbe qualquer forma de discriminação. Além disso, o STF considerou o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade e segurança, também garantidos pela Constituição.

Argumentos centrais da decisão

O principal argumento utilizado pelo STF é que a homofobia e a transfobia representam formas de racismo social, na medida em que inferiorizam, estigmatizam e marginalizam indivíduos com base em características inatas e imutáveis.

Dessa forma, essa interpretação expansiva da Lei 7.716/89 foi vista como necessária para preencher uma lacuna legislativa e garantir a proteção efetiva dos direitos de grupos historicamente vulneráveis e marginalizados.

Consequências jurídicas

Assim, a decisão do STF trouxe consigo importantes consequências jurídicas e sociais. Primeiramente, estabeleceu a tipificação penal da homofobia, permitindo que atos discriminatórios baseados na orientação sexual e identidade de gênero sejam punidos com as mesmas sanções previstas para crimes de racismo. Isso inclui penas de reclusão e multas, além de possibilitar a aplicação de medidas educativas e preventivas.

Além disso, a decisão impulsionou o debate sobre a necessidade de uma legislação específica que aborde de maneira expressa e direta os crimes de homofobia e transfobia. Embora a interpretação da Lei 7.716/89 pelo STF tenha sido um passo crucial, há um entendimento de que uma lei própria poderia fornecer uma estrutura mais robusta e detalhada para o enfrentamento dessas questões.

Análise crítica

A aplicação da Lei 7.716/89 à homofobia e transfobia está em consonância com a evolução dos direitos humanos e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Entretanto, é necessário ponderar sobre a segurança jurídica e a clareza legislativa. A interpretação judicial, embora legítima e necessária em muitos casos, não substitui a função do legislador de criar normas específicas e detalhadas.

A decisão do STF deve ser vista como um ponto de partida para um debate legislativo mais amplo e profundo, que resulte em uma legislação específica sobre homofobia e transfobia.

Conclusão

Portanto, se os cânticos racistas entoados pelos jogadores da Argentina ocorressem no Brasil, os envolvidos poderiam ser responsabilizados penalmente com base no artigo 20 da Lei nº 7.716/89.

A transmissão por meio de uma live em rede social agravaria a pena conforme o §2º, enquanto a ocorrência no contexto de um evento esportivo justificaria a aplicação das penas mais severas previstas no §2º-A.

Assim, a interpretação doutrinária e a jurisprudência brasileira reforçam a necessidade de uma postura firme contra a discriminação racial, promovendo a proteção dos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana.

Referências

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 70.881/SP. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz. Terceira Seção. Julgado em 26/06/2018. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1776250&num_registro=201700856986&data=20180801&formato=PDF. Acesso em: 16 jul. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 82.424/RS. Relator: Min. Moreira Alves. Julgado em 17/09/2003. Diário da Justiça, 19 mar. 2004. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=82424&base=baseAcordaos. Acesso em: 16 jul. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em 26/04/2012. Diário da Justiça Eletrônico, 20 out. 2014. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=ADPF+186&base=baseAcordaos. Acesso em: 16 jul. 2024.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 19. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.

GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Fundamentos e Princípios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. ed. São Paulo: Forense, 2021.

Referências sobre a questão da aplicação da Lei 7.716/89 em casos de homofobia

  • Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 (ADO 26).
  • Mandado de Injunção nº 4733 (MI 4733).

[1]KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? . R. Jur. UNIJUS. Uberaba-MG, V.10, n. 13, p.117-144, Novembro, 2007.

[2]NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 304.

[3]NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 304.

[4]NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 305.

[5]NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 305.


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