*João Paulo Lawall Valle é Advogado da União (AGU) e professor de direito administrativo, financeiro e econômico do Estratégia carreira jurídica.
Entenda o caso
Um Instituto de direito privado ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) requerendo que a Suprema Corte brasileira reconheça a existência de estado de coisas inconstitucional do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS).
Vale rememorar que no mês de abril de 2025 foi descoberto um esquema de fraude no INSS que retirava dinheiro da conta de aposentados e pensionistas mensalmente sem o seu consentimento ou conhecimento, conforme apontado em investigação da Polícia Federal e da CGU (Controladoria-Geral da União) nas últimas semanas.
Constatou-se então a existência de um esquema fraudulento. Com a colaboração de servidores do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), entidades sindicais e associativas realizavam-se descontos indevidos sobre proventos de aposentadoria e pensões. Para viabilizar tais descontos, os integrantes do esquema promoviam o cadastramento de beneficiários junto às referidas entidades sem a devida autorização, valendo-se, inclusive, da falsificação de assinaturas.
Tais descontos eram efetuados diretamente na folha de pagamento dos segurados. Em decorrência disso, salvo se o aposentado ou pensionista acessasse regularmente a plataforma “Meu INSS” e, de forma diligente, analisasse a composição de seus proventos, dificilmente tomaria conhecimento das subtrações ilícitas perpetradas em seu prejuízo.
Preceitos fundamentais violados
Foi este contexto que serviu de causa de pedir para o ajuizamento da ADPF 1224, distribuído para o Ministro André Mendonça, requerendo que o STF declare o estado de coisas inconstitucional no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), caracterizado pela violação sistêmica, massiva e persistente dos seguintes preceitos fundamentais:
- Dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III),
- Igualdade (Art. 5º, caput),
- Direito à previdência e assistência social (Art.6º, 201 e 203)
- Proteção especial à pessoa com deficiência e ao idoso (Art. 203, V, 227 e 230).
Segundo o autor, a violação aos preceitos fundamentados decorre das omissões e falhas estruturais na prevenção de fraudes e na garantia do acesso aos benefícios.
Além disso foram feitos os seguintes pedidos:
- A procedência da Arguição, para declarar a inconstitucionalidade de qualquer norma infralegal ou acordo que permita descontos não autorizados em benefícios previdenciários;
- A procedência da Arguição, para determinar a criação de mecanismos de consulta e consentimento expressos, seguros e acessíveis, especialmente adaptados às pessoas com deficiência;
- A procedência da Arguição, para determinar a participação obrigatória da sociedade civil – inclusive o Instituto proponente – na formulação de políticas de transparência e controle sobre os descontos previdenciários.
A arguição de descumprimento de preceito fundamental foi distribuída no Supremo Tribunal Federal no dia 07/05/2025 e tem como relator o Ministro André Mendonça.
Análise Jurídica
ADPF
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma ação de controle concentrado de constitucionalidade prevista no art. 102, §1º, da Constituição Federal e regulamentada pela Lei nº 9.882/1999.
Sua finalidade precípua é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, seja ele normativo, administrativo ou jurisdicional. Trata-se de uma ação de natureza subsidiária, uma vez que somente será admitida quando inexistir outro meio eficaz para sanar a lesividade, conforme expressamente disposto no artigo 4º, §1º, da referida lei. A ADPF reforça o sistema de proteção da Constituição, sendo instrumento valioso para a preservação de sua integridade e eficácia.
São legitimados para propor ADPF os mesmos previstos no art. 103 da Constituição Federal, aplicando-se, portanto, o rol taxativo que compreende, entre outros, o Presidente da República, as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o Procurador-Geral da República, os Governadores de Estado, o Conselho Federal da OAB, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.
Preceito fundamental
O cabimento da ADPF exige que se verifique a existência de um “preceito fundamental” ameaçado ou violado. A Constituição não define expressamente o que se entende por preceito fundamental.
Contudo, a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal têm compreendido que o conceito abrange não apenas os direitos e garantias fundamentais expressos no texto constitucional, mas também os princípios constitucionais sensíveis, as cláusulas pétreas, os princípios fundamentais do Estado brasileiro (como o princípio da dignidade da pessoa humana, da separação de Poderes, da legalidade e da moralidade administrativa), além de normas estruturantes do ordenamento constitucional.
Assim, a ADPF figura como instrumento de tutela ampliada da Constituição, especialmente útil para questionar atos normativos pré-constitucionais ou situações omissivas incompatíveis com o pacto fundamental.
A decisão em ADPF proferida pelo STF terá eficácia “erga omnes”. Ou seja, ela terá eficácia contra todos, e não apenas contra aqueles que são partes no processo. Além disso, ela terá efeito vinculante, obrigando a todos os demais órgãos do Poder Público, com exceção do Poder Legislativo e do próprio STF.
Além disso, o STF poderá realizar a modulação temporária de efeitos, por meio do voto de 2/3 dos seus ministros, de modo a permitir que a decisão apenas tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Estado de Coisas Inconstitucional
Por sua vez, o que representa esta expressão “estado de coisas inconstitucional”?
A expressão “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI) designa uma situação de inconstitucionalidade estrutural, generalizada e persistente, caracterizada por violações massivas e contínuas a direitos fundamentais, decorrentes de ações e omissões reiteradas por parte de diferentes órgãos e esferas do Poder Público.
Trata-se de um conceito desenvolvido inicialmente pela jurisprudência da Corte Constitucional da Colômbia, notadamente no julgamento do caso T-025/2004. Na oportunidade, reconheceu-se a existência de uma realidade institucional que, de forma sistêmica, impedia a concretização de direitos constitucionais de populações vulneráveis.
Provocação à atuação judicial
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal passou a adotar esse conceito em julgamentos paradigmáticos, a exemplo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que tratou das graves violações aos direitos dos presos no sistema penitenciário nacional.

Nesse precedente, a Corte reconheceu que a superlotação carcerária, a falta de acesso a condições mínimas de dignidade, saúde, segurança e assistência jurídica configuravam um estado permanente de inconstitucionalidade, cuja superação exigia atuação coordenada e imediata dos Poderes da República. Assim, o ECI funciona como uma técnica de diagnóstico institucional que visa provocar a atuação judicial proativa e estruturante.
Importante deixar claro que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional não se limita à simples declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo isolado. Pelo contrário, ele permite ao Judiciário exigir a adoção de políticas públicas, cronogramas de cumprimento e medidas administrativas e legislativas para reverter a situação, sem, contudo, invadir a esfera de competência dos demais Poderes.
Em essência, o ECI é expressão do constitucionalismo transformador, alicerçado na ideia de que a jurisdição constitucional não deve ser omissa diante de realidades que negam de forma sistemática a efetividade dos direitos fundamentais e a concretização da dignidade da pessoa humana.
Vejamos a doutrina do professor e Ministro do STF Luis Roberto Barroso (in: Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 7ª ed.):
A técnica do ECI rompe com a lógica binária da constitucionalidade/inconstitucionalidade individualizada, e reconhece que há problemas estruturais cuja solução exige coordenação interinstitucional e medidas progressivas.
No caso da fralde no INSS, o Estado de Coisas Inconstitucional decorre da violação sistêmica, massiva e persistente de preceitos fundamentais previstos na CF/88, dentre eles a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III) e a Proteção especial à pessoa com deficiência e ao idoso.
Importante que os concurseiros fiquem atentos ao julgamento da ADPF 1224. Isso porque as decisões nela proferidas terão importância destacada para os próximos certames, tanto em direito constitucional, como em direito previdenciário.
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