Acordo de não persecução penal: quando o timing da “aceitação” não está nas mãos do acusado – Informativo 852 do STJ

Acordo de não persecução penal: quando o timing da “aceitação” não está nas mãos do acusado – Informativo 852 do STJ

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento fundamental sobre o momento adequado para manifestação das partes em propostas de acordo de não persecução penal.

O julgado, sob relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, esclarece definitivamente que não cabe ao réu ou investigado decidir quando se manifestará sobre a proposta apresentada pelo Ministério Público.

No caso analisado, a defesa pretendeu condicionar sua manifestação sobre o ANPP ao prévio julgamento de preliminares processuais suscitadas em recurso especial.

O tribunal, contudo, afastou essa pretensão, reafirmando que a manifestação deve ocorrer após o oferecimento da proposta, independentemente de outras questões processuais pendentes.

Diante deste embate entre a estratégia defensiva e os contornos legais do instituto, qual deve prevalecer: a discricionariedade temporal pretendida pela defesa ou a imediaticidade da manifestação exigida pela natureza jurídica do acordo?

O caso concreto e sua complexidade processual

Acordo de não persecução penal:

De início, a controvérsia surgiu quando o Ministério Público Federal, em atenção ao entendimento consolidado do STJ e STF sobre a viabilidade de celebração de ANPP em ações penais já em trâmite quando da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, apresentou proposta de acordo à parte interessada.

A defesa, todavia, adotou estratégia processual peculiar.

Ao invés de manifestar concordância ou discordância imediata, optou por condicionar sua resposta ao prévio julgamento de preliminares processuais que havia suscitado em recurso especial anteriormente interposto.

Essa postura revelava clara tentativa de postergar a manifestação até conhecer o desfecho das questões prejudiciais.

Ora, o cerne da discussão residia na interpretação da dinâmica temporal do ANPP e na extensão da discricionariedade conferida às partes para decidir sobre o momento de sua manifestação.

Natureza jurídica do ANPP como negócio processual

A introdução do ANPP no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu pelo art. 28-A do CPP, por meio da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Seu inegável propósito era o de possibilitar soluções consensuais para crimes de menor gravidade, reduzindo o número de processos penais ao mesmo tempo em que propicia maior celeridade à justiça criminal.

O ANPP veio como forma de mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública diante da existência de lastro suficiente de autoria e materialidade para oferecimento da denúncia, assim como já acontece na transação penal, instituto cabível para as infrações de menor potencial ofensivo (art. 76 da Lei n. 9.099/1995).

Pode-se asseverar, também, a mitigação ao princípio da indisponibilidade. Segundo esse princípio, em linhas gerais, não é dado ao Ministério Público desistir no curso da ação penal, sob a perspectiva de aplicação do ANPP aos processos em curso ao tempo do início da vigência do ANPP no ordenamento jurídico (Lei n. 13.964/2019, em 23/1/2020), consoante decidido no julgamento do HC 185.913/DF pelo STF.

Fundamentos

Todavia, o CPP não disciplinou expressamente a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal no âmbito da ação penal privada. Isso gerou controvérsia doutrinária e jurisprudencial. A despeito da lacuna normativa, deve-se admitir a extensão, por analogia, do ANPP à ação penal privada, pelos seguintes fundamentos:

a) O interesse público subjacente à ação penal privada - Ainda que o direito de ação seja atribuído ao ofendido, a persecução penal continua sendo uma manifestação do ius puniendi estatal, sendo inalienável ao particular. O querelante não age em nome de um direito material próprio, mas sim no exercício de um direito de substituição processual.

b) O princípio da isonomia entre réus de ações penais públicas e privadas - Negar o ANPP a crimes de ação penal privada, nos casos em que todos os requisitos legais estão preenchidos, significaria conceder tratamento mais gravoso a acusados que se encontram em situações fáticas idênticas, o que violaria o princípio da igualdade substancial.

c) O caráter restaurativo e desjudicializante da política criminal contemporânea - O ANPP visa a garantir uma justiça penal mais eficiente e menos punitivista, fomentando a reparação do dano e prevenindo o encarceramento desnecessário. Se há espaço para essa abordagem na ação penal pública, com maior razão deve ser admitida na ação penal privada, que, por sua própria natureza, confere ao ofendido um juízo de conveniência sobre a persecução penal.

Dessa forma, a ausência de previsão expressa não pode ser interpretada como proibição. Deve-se então reconhecer a aplicação do acordo de não persecução penal na ação penal privada por analogia in bonam partem.

Legitimidade

Quanto a legitimidade para a propositura do acordo, ainda que se reconheça a titularidade da ação penal privada pelo ofendido, a doutrina e a jurisprudência têm apontado que esse direito não é absoluto e deve ser exercido dentro dos limites da razoabilidade e proporcionalidade.

Ou seja, o querelante não pode recusar arbitrariamente um acordo de não persecução penal, pois não se pode utilizar a persecução penal como um instrumento de vingança privada. Nesse sentido, o Ministério Público, como custos legis, pode e deve atuar subsidiariamente nos seguintes casos:

a) Recusa injustificada do querelante - Quando o querelante, sem fundamentação razoável, se recusar a ofertar o ANPP, ainda que estejam preenchidos os requisitos legais, o Ministério Público deve intervir para impedir que a persecução penal se torne um instrumento de abuso.

b) Silêncio ou inércia do querelante - Na hipótese de omissão do querelante diante da proposta de ANPP, o Ministério Público pode supletivamente ofertá-la, garantindo que o processo penal atenda a uma finalidade justa e racional.

c) Propostas abusivas e desproporcionais - Caso o querelante imponha exigências irrazoáveis ou desproporcionais para a celebração do acordo, inviabilizando sua efetivação, caberá ao Ministério Público intervir para garantir que haja o respeito aos parâmetros legais.
É cabível acordo de não persecução penal em ação penal privada, mesmo após o recebimento da denúncia, tendo o Ministério Público legitimidade supletiva para propor a medida quando houver inércia ou recusa infundada do querelante.

STJ. 5ª Turma. REsp 2.083.823-DF, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 11/3/2025 (Informativo 843).
1 - O Acordo de não persecução penal constitui um negócio jurídico processual penal instituído por norma que possui natureza processual, no que diz respeito à possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal, e, de outro lado, natureza material em razão da previsão de extinção da punibilidade de quem cumpre os deveres estabelecidos no acordo (art. 28-A, § 13, do Código de Processo Penal - CPP).

2 - Diante da natureza híbrida da norma, a ela deve se aplicar o princípio da retroatividade da norma penal benéfica (art. 5º, XL, da CF), pelo que é cabível a celebração de acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado da condenação.

3 - Nos processos penais em andamento em 18/09/2024 (data do julgamento do HC 185.913/DF pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal), nos quais seria cabível em tese o ANPP, mas ele não chegou a ser oferecido pelo Ministério Público ou não houve justificativa idônea para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo no caso concreto.

4 - Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir de 18/09/2024, será admissível a celebração de ANPP antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura do acordo, no curso da ação penal, se for o caso.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.890.344-RS e REsp 1.890.343-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgados em 23/10/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1098) (Informativo 831).

Caso dos autos

Nesse sentido, o STJ destacou que o ANPP não constitui mera faculdade processual exercitável a qualquer tempo, mas sim negócio jurídico com timing específico estabelecido pela legislação.

O acórdão enfatizou que, enquanto o Ministério Público não pode deixar de oferecer a proposta sem justificativa razoável quando presentes os requisitos legais, também não se permite que o réu ou investigado decidir unilateralmente o momento de sua manifestação.

Isto porque, conforme destacou o relator, "se, por um lado, não pode o órgão de acusação deixar de oferecer, sem justificativa razoável, a proposta de acordo, por outro, não é dado ao réu/investigado decidir em que momento deseja manifestar-se sobre um acordo que foi efetivamente proposto".

Ademais, o STJ destacou importante paradoxo que fundamenta sua conclusão: se o caso comporta arquivamento das investigações nos termos da literalidade do art. 28-A do CPP, não se justifica a celebração de acordo de não persecução penal.

Afinal, se inexiste razão legal para tramitar ação penal, tampouco há justificativa para negociar acordo que pressupõe confissão e aceitação de cumprimento de obrigações naturalmente gravosas.

Dessa maneira, o STJ adotou interpretação teleológica que privilegia a funcionalidade do instituto e evita sua utilização meramente protelatória.

Assim, a natureza negocial do ANPP foi ressaltada, reforçando o entendimento de que sua dinâmica não pode ser subvertida por estratégias processuais que desvirtuem sua finalidade essencial de composição célere e eficiente de conflitos penais.

Discricionariedade limitada e momento da manifestação

Lado outro, o acórdão também estabeleceu importante distinção entre a discricionariedade conferida às partes para aceitar ou recusar o acordo e a inexistência de discricionariedade quanto ao timing dessa manifestação.

Dessa forma, o STJ esclareceu que a parte possui ampla liberdade para recusar a proposta, devendo indicar as razões pelas quais sua celebração não se justifica.

Contudo, o juízo no momento do julgamento das teses defensivas deve analisar essas razões, não constituindo fundamento para postergação da manifestação.

Logo, a decisão reconhece que a defesa pode legitimamente entender que o acordo não lhe seria vantajoso, especialmente quando pretende ver reconhecidas nulidades suscitadas em recursos pendentes.

Contudo, essa avaliação estratégica não autoriza o condicionamento temporal da manifestação a outros eventos processuais como no caso em que gostaria de esperar a análise das preliminares pelo Poder Judiciário.

Assim, no entendimento do relator, o julgamento ao estabelecer parâmetros claros para o timing da manifestação sobre propostas de ANPP cumpre relevante papel na concretização dos objetivos de celeridade e eficiência pretendidos pelo legislador.

Logo, decidiu o STJ: “A manifestação sobre a proposta de acordo de não persecução penal deve ocorrer após o seu oferecimento, não cabendo ao réu ou ao investigado decidir quando se manifestará”.

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