Justiça determina que hospital realize aborto em caso de stealthing, reconhecendo a prática como violação grave dos direitos reprodutivos.

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
A Justiça de São Paulo determinou que o Centro de Referência da Saúde da Mulher, do governo estadual, realize o aborto legal em casos de gravidez decorrente de stealthing, ou seja, retirada de preservativo sem consentimento durante o ato sexual.

A palavra “stealthing”, de origem na língua inglesa, significa, em tradução livre, furtivo. O autor desse ato leva a vítima a acreditar que está em um ato sexual seguro, mas de maneira escondida ou camuflada retira o preservativo e passa a praticar ato em desconformidade com a vontade da vítima, colocando-a em risco.
O stealthing pode ser enquadrado como crime de violação sexual mediante fraude, previsto no artigo 215, do código penal.
CP
Violação sexual mediante fraude
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
Importante deixar claro que, mesmo que o início da relação tenha sido consentido, a partir do momento em que há a falta de consentimento, a conduta pode ser caracterizada como crime.
A liminar foi concedida no bojo de uma ação popular movida pela Bancada Feminista do PSOL, por meio dos mandatos na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa de São Paulo.
A magistrada afirmou que há indícios de que o hospital, localizado na capital paulista, tem recusado a realização do procedimento de aborto nas hipóteses de stealthing.
Variações Fáticas no Stealthing
A advogada criminalista Clarissa Höfling explica, de forma didática, as variações fáticas na prática do stealthing. Vejamos:
- Se o ato sexual começou de forma consensual, mas a parceira condicionou a sua prática ao uso do preservativo e, durante o sexo, o parceiro o retira a força, pode-se aventar a prática do crime de estupro (artigo 213 do Código Penal), pois, mediante violência ou grave ameaça, a relação continuou sendo mantida sem o consentimento da vítima.
- Já se o preservativo for retirado durante a relação sexual, sem que a parceira perceba, e, por isso ela dá continuidade ao ato, pode-se configurar o delito de violação sexual mediante fraude (artigo 215 do Código Penal).
- Na hipótese do uso da camisinha não ter sido uma condição imposta pela parceira para o ato sexual e, durante, o parceiro a retirar, não há a configuração de qualquer crime.
- Se, por outro lado, o parceiro retira a camisinha sem o consentimento da parceira e lhe transmite, no ato, alguma doença, pode-se aventar configurados um dos delitos de Periclitação da Vida e da Saúde (artigos 130 a 132 do Código Penal), ou, até mesmo, o delito de lesão corporal gravíssima (artigo 129, §2º, do Código Penal).
Aborto – Como é hoje
Atualmente, no Brasil, o aborto é permitido em três hipóteses:

Para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessária a comprovação da causa de justificação, seja através de um laudo médico, ou um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia.
E para o caso de estupro não há necessidade de apresentação de Boletim de Ocorrência ou algum exame que comprove o crime. O relato da vítima à equipe médica é suficiente.
Portanto, o direito positivado prevê duas hipóteses permitidas de aborto: risco para a mãe e gravidez resultante de estupro. A terceira hipótese permissiva do aborto decorre de construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que, na ADPF 54, declarou inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
ADPF 54
O STF, no ano de 2012, julgando a ADPF 54, acrescentou mais uma hipótese lícita de aborto: caso de gravidez envolvendo feto anencéfalo.
O dicionário Aurélio define a anencefalia como a “monstruosidade consistente na falta de cérebro“, mas em linguagem científica podemos conceituar anencefalia como uma malformação no feto que implica na ausência ou formação defeituosa dos hemisférios cerebrais, ou seja, não existe cérebro bem constituído no anencéfalo.
Em geral, a anencefalia impede a vida extrauterina do bebê, tornando a vida inviável.
O cerne da discussão na ADPF 54 foi sopesar o aparente conflito entre os interesses daqueles que desejam proteger todos os seres humanos, desde a concepção, independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência, e aqueles que desejam proteger os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade, sua liberdade, sua autodeterminação, sua saúde e seus direitos sexuais e reprodutivos.
Stealthing e aborto – Analogia
Como visto acima, o aborto não seria aplicável aos casos de stealthing, por falta de previsão legal ou de decisão com efeito vinculante do Supremo Tribunal Federal.
Portanto, como justificar a aplicação do aborto na hipótese de stealthing? A resposta é: por analogia. Foi o que decidiu a juíza Luiza Barros Rozas Verotti, da 13ª vara de Fazenda Pública de SP.
A magistrada considerou que, como há previsão de aborto legal para as hipóteses de estupro, o procedimento pode ser aplicado em casos de stealthing por analogia.

A analogia, portanto, é utilizada pelo intérprete e aplicador da norma quando há uma lacuna legislativa, fugindo à lógica restritiva e gramatical do dispositivo legal.
É imperioso ressaltar que não se admite o uso da analogia no direito penal para fins de configuração de crimes, ante o princípio da tipicidade.
No direito penal, a analogia é uma técnica excepcional, permitida apenas para beneficiar o réu.
No caso ora analisado, a analogia não está sendo utilizada para punir o autor do crime de stealthing (violação sexual mediante fraude), e sim para obrigar a rede pública de saúde a realizar o aborto diante de uma gestação ocorrida nessa situação.
FUNDAMENTOS DA DECISÃO JUDICIAL |
O Estado tem a obrigação de garantir assistência integral às vítimas de violência sexual, incluindo atendimento emergencial e multidisciplinar em hospitais da rede pública |
O stealthing altera as condições inicialmente acordadas para a relação sexual, configurando-se como violação à liberdade sexual |
Evidente o perigo da demora, uma vez que há risco de inúmeras gestações indesejadas decorrentes de violência sexual prosseguirem, com drásticas consequências à saúde física e mental da mulher, além da transmissão de infecções sexualmente transmissíveis. |
Como há previsão de aborto legal para as hipóteses de estupro, o procedimento pode ser aplicado em casos de stealthing, por analogia. |
Importante acompanhar o tema para ver como os Tribunais Superiores irão tratar a questão, que pode ser cobrada em provas de direito penal, processo penal e direito constitucional.
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