A morte do “juridiquês”

A morte do “juridiquês”

O empobrecimento da linguagem formal no sistema de justiça e os riscos do abandono desse vocabulário jurídico (morte do “juridiquês)

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Juridiquês

Juridiquês: entenda

Temos presenciado, ultimamente, um empobrecimento crescente na utilização da linguagem formal no sistema de justiça, e, se de um lado, esse abandono da linguagem técnico-jurídica torna mais acessível o mundo do direito para o cidadão comum, de outro pode trazer riscos aos operadores do direito e a própria sociedade.  

O termo “juridiquês” é utilizado, no Brasil, para designar o uso excessivo do jargão jurídico e de termos técnicos usados pelos operadores do Direito, como expressões complexas, de escrita difícil e o uso do latim. Quem nunca ouviu expressões como: “data maxima venia”, prericulum in mora, “mutatis mutandis”, “conditio sine qua non”, “entranhas meritórias”, “é evidente o malogro do intento”, e por aí vai.   

De fato, há uma enorme pressão social para que haja uma simplificação da linguagem jurídica, ou seja, para que haja o abandono, dentro do possível, do chamado “juridiquês” em prol de uma comunicação mais clara e direta com o jurisdicionado, com os veículos de comunicação, e com o público em geral. 

Fim do”Juridiquês”: grupo de trabalho do STJ

O Superior Tribunal de Justiça instituiu um grupo de trabalho (GT) para promover o uso da linguagem simples na Corte (fim do “juridiques”). A medida marca a adesão do órgão ao Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, lançado em novembro de 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça. 

Esse Pacto Nacional consiste na adoção de ações, iniciativas e projetos a serem desenvolvidos no sistema de justiça, com o objetivo de adotar linguagem simples, direta e compreensível a todos os cidadãos na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade, o que engloba, também, o uso de Língua Brasileira de Sinais (Libras) e audiodescrição ou outras ferramentas similares. 

Todos os tribunais envolvidos assumem o compromisso de, sem negligenciar a boa técnica jurídica, estimular os juízes e setores técnicos a: 

  • Eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido; 
  • Adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos; 
  • Explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou julgamento na vida do cidadão; 
  • Utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais; 
  • Fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário; 
  • Reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; 
  • Utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade. 

Fim do”Juridiquês”: atuação do CNJ

O CNJ incentiva o uso do vernáculo de um modo que conceitos complexos se tornem compreensíveis para qualquer pessoa, para evitar que a linguagem jurídica seja um obstáculo à compreensão das decisões judiciais (fim do “juridiques”)

O Pacto trabalha em cima de 5 eixos de atuação, que são: 

1º Eixo: SIMPLIFICAÇÃO DA LINGUAGEM DOS DOCUMENTOS 

  • Fomento ao uso de linguagem simples e direta nos documentos judiciais, sem expressões técnicas desnecessárias; 
  • Criação de manuais e guias para orientar cidadãos e cidadãs sobre o significado das expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos. 

2º Eixo: BREVIDADE NAS COMUNICAÇÕES 

  • Incentivo à utilização de versões resumidas de votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais; 
  • Estímulo à brevidade de pronunciamentos nos eventos promovidos no Poder Judiciário, com capacitação específica para comunicações orais; 
  • Elaboração de protocolos para eventos que evitem, sempre que possível, formalidades excessivas. 

3º Eixo: EDUCAÇÃO, CONSCIENTIZAÇÃO E CAPACITAÇÃO  

  • Formação inicial e continuada de magistrados e servidores para elaboração de textos em linguagem simples e acessível à sociedade em geral;  
  • Promoção de campanhas de amplo alcance de conscientização sobre a importância do acesso à justiça de forma compreensível. 

4º Eixo: TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO 

  • Desenvolvimento de plataformas com interfaces intuitivas e informações claras; 
  • Utilização de recursos de áudio, vídeos explicativos e traduções para facilitar a compreensão dos documentos e das informações do Poder Judiciário. 

5º Eixo: ARTICULAÇÃO INTERINSTITUCIONAL E SOCIAL 

  • Fomento da colaboração da sociedade civil, das instituições governamentais ou não, e da academia, para promover a linguagem simples em documentos;  
  • Criação de uma rede de defesa dos direitos de acesso à justiça por meio da comunicação simples e clara;   
  • Compartilhamento de boas práticas e recursos de linguagem simples; 
  • Elaboração de programas de treinamento conjunto de servidores e servidoras para promoção de comunicação simples, acessível e direta;  
  • Estabelecimento de parcerias com universidades, veículos de comunicação ou influenciadores digitais para cooperação técnica e desenvolvimento de protocolos de simplificação da linguagem. 

Fim do”juridiques”: objetivo final

O objetivo final, portanto, é fazer com que cada cidadão saiba ler e entender uma decisão judicial sem maiores dificuldades. 

Mas será que essa simplificação é tão salutar quanto se apregoa? Existe uma corrente de pensadores do direito para a qual a simplificação exagerada do vernáculo jurídico acabará desnaturando a própria essência da ciência do direito. Vejamos as suas razões. 

Toda ciência, e com o Direito não seria diferente, tem a sua linguagem própria, que é a linguagem técnica, e ela é fundamental para garantir a própria existência do ramo do conhecimento como ciência autônoma, o seja, uma das características de cada ramo da ciência é possuir um modo próprio de comunicação, que o diferencia das demais ciências.  

Podemos dizer que um dos marcos característicos do direito como ciência é ter sua própria linguagem, por meio da qual os operadores do direito se comunicam e praticam os atos necessários ao exercício da ciência.  

Assim como a medicina, a matemática, a sociologia, a economia, têm a sua própria linguagem, o Direito também a tem, e é chamada popularmente de “juridiquês”. 

Os que advogam contra a simplificação do vernáculo jurídico ressaltam que a riqueza e a especificidade da linguagem, ao contrário de complicar e atrapalhar a comunicação, a torna mais clara, mais objetiva e mais precisa, o que é essencial para qualquer ciência. Uma única expressão técnica, por exemplo, poderia substituir toda uma ideia.  

Exemplos

Vejamos um exemplo do “juridiques”: quando se lê a expressão “prescrição quinquenal” eu estou dizendo que transcorreu o prazo de cinco anos sem que a parte interessada tenha diligenciado para pleitear a satisfação de sua pretensão, motivo pelo qual ele perdeu essa pretensão. Perceba que uma única expressão resumiu toda a ideia. Esse é um dos grandes objetivos da linguagem técnica: sintetizar ideias através da utilização de expressões técnicas. 

O vernáculo técnico serve, também, para conferir segurança jurídica. Quando se utiliza uma expressão técnica eu sei exatamente o que ela quer dizer, diminuindo o risco de dubiedades ou interpretações inadequadas. Diminui, portanto, a fluidez semântica. 

Outro ponto é a beleza em si da linguagem rebuscada, mais atraente do que a linguagem simplista e bruta do vernáculo comum. Para o festejado jurista Miguel Reale, ao defender o uso da linguagem técnica do Direito estaria se prestigiando “os valores da beleza e da elegância”. 

Conclusão

Podemos concluir aduzindo que é preciso reconhecer a importância do “juridiquês”, da linguagem técnico-jurídica, para a própria existência e evolução do Direito como ciência, ressaltando os benefícios da precisão, do poder de síntese e da beleza que lhe são inerentes. Mas de outra ponta o principal objetivo da linguagem é a comunicação, ou seja, fazer com que o destinatário da mensagem entenda o que está sendo transmitido. Aqui entra em cena o esforço dos atores sociais envolvidos (magistrados, doutrinadores, advogados, procuradores, estudantes de direito) nessa missão de democratizar o sistema de justiça. 

A Constituição Federal de 1988 estabelece, entre os direitos e as garantias fundamentais, o acesso à justiça, à informação e à razoável duração do processo, os quais apenas podem se concretizar por meio do uso de linguagem acessível e compreensível a todas as pessoas. 

A simplificação da linguagem pode ser utilizada, também, como instrumento de combate ao racismo e à discriminação, na medida em que facilita a compreensão do ordenamento jurídico e dos direitos ali insculpidos por parte das camadas mais vulneráveis da população, que são em sua grande maioria pobres, pretos, favelados. Democratizar o acesso à linguagem jurídica é incluir toda uma camada da população que hoje vive à margem do sistema de justiça, com amplas restrições aos seus direitos mais básicos. 

Enfim, deve haver a harmonização no uso da linguagem jurídica, de modo que preserve o Direito como ciência, com boa técnica, e garanta, também, uma compreensão fácil por parte do cidadão comum, concretizando assim o postulado do amplo acesso à justiça. Esse é o grande desafio que se apresenta nos dias de hoje.

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