Prof. Gustavo Cordeiro
Como o STJ consolidou a competência absoluta do Juizado da Infância e Juventude e o que isso muda para os concursos jurídicos
Introdução: por que esse tema importa para sua prova
Se você está se preparando para Magistratura, Ministério Público ou Defensoria Pública, precisa entender uma mudança de paradigma que vem sendo consolidada pelo STJ: a competência da Vara da Infância e Juventude não se limita a situações de risco.
No recente REsp 2.062.293-DF (julgado em setembro de 2025), a Terceira Turma do STJ reafirmou que pedidos de suprimento judicial de autorização para viagem internacional de crianças e adolescentes são de competência absoluta do Juizado da Infância e Juventude, independentemente de haver situação de vulnerabilidade, abandono ou risco.
Esse entendimento impacta diretamente questões sobre competência, interpretação do ECA e aplicação da doutrina da proteção integral. É matéria recorrente em provas de segunda fase e questões objetivas que exploram a distinção entre a antiga “doutrina da situação irregular” e a atual “doutrina da proteção integral”, além das hipóteses de competência previstas no art. 148 do ECA.
Da situação irregular à proteção integral: entendendo a mudança de paradigma
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) representou uma ruptura completa com o antigo Código de Menores. Enquanto a legislação anterior adotava a doutrina da situação irregular — que restringia a atuação judicial aos casos de abandono, carência ou delinquência —, o ECA consagrou a doutrina da proteção integral, fundamentada no art. 227 da Constituição Federal.
O que isso significa na prática?

A Justiça da Infância e Juventude deixou de ser uma “justiça da exceção” para se tornar uma justiça protetiva e preventiva. Sua atuação não aguarda a configuração de risco ou ameaça, mas se projeta para assegurar o exercício pleno dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, em consonância com o princípio do melhor interesse.
Essa mudança de lógica é essencial para compreender por que o STJ afirmou, no REsp 2.062.293-DF, que a ausência de situação de risco não afasta a competência especializada. A proteção integral exige que o Judiciário atue sempre que houver necessidade de resguardar, prevenir ou assegurar direitos da criança ou do adolescente.
Mapeamento completo: as hipóteses de competência da Vara da Infância
O art. 148 do ECA estabelece um rol extenso de competências da Justiça da Infância e Juventude, que pode ser didaticamente dividido em duas categorias: competências gerais (incisos I a VII) e competências condicionadas às hipóteses do art. 98 (parágrafo único).
Competências gerais (art. 148, incisos I a VII)
Estas competências independem da configuração de situação de risco prevista no art. 98 do ECA:
I - Apuração de ato infracional Conhecer de representações promovidas pelo Ministério Público para apuração de ato infracional atribuído a adolescente, aplicando as medidas socioeducativas cabíveis. Esta é a competência mais conhecida e abrange toda a sistemática do procedimento de apuração de atos infracionais.
II - Remissão Conceder a remissão, como forma de suspensão ou extinção do processo. A remissão é um instituto de política criminal juvenil que pode ser concedida antes ou durante o processo, funcionando como perdão judicial ou transação.
III - Adoção Conhecer de pedidos de adoção e seus incidentes. Toda e qualquer adoção de criança ou adolescente tramita perante a Vara da Infância, sendo esta competência exclusiva e indelegável.
IV - Ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos Conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente. Aqui se incluem ações civis públicas, ações coletivas e ações individuais que versem sobre direitos infantojuvenis, observado o art. 209 do ECA.
V - Irregularidades em entidades de atendimento Conhecer de ações decorrentes de irregularidades em entidades de atendimento, aplicando as medidas cabíveis. Esta competência fiscalizatória permite a intervenção em abrigos, instituições de acolhimento e entidades que executam medidas socioeducativas.
VI - Infrações administrativas Aplicar penalidades administrativas nos casos de infrações contra norma de proteção à criança ou adolescente. Inclui multas e outras sanções previstas nos arts. 245 a 258 do ECA.
VII - Casos encaminhados pelo Conselho Tutelar Conhecer de casos encaminhados pelo Conselho Tutelar, aplicando as medidas cabíveis. Esta competência estabelece a interface entre o órgão administrativo (Conselho Tutelar) e o Poder Judiciário.
Competências condicionadas (art. 148, Parágrafo Único)
Estas competências são aplicáveis “quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do art. 98”, que prevê situações de:
- Ameaça ou violação de direitos por ação ou omissão da sociedade ou do Estado
- Falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável
- Conduta da própria criança ou adolescente
Importante: O STJ, no REsp 2.062.293-DF, flexibilizou essa exigência ao estabelecer que, para fins da alínea “d” (discordância no exercício do poder familiar), a competência é absoluta mesmo sem configuração das hipóteses do art. 98.
a) Guarda e tutela Conhecer de pedidos de guarda e tutela. Esta competência se distingue da regulamentação de guarda nas ações de família: quando há situação do art. 98, a competência é da Vara da Infância; quando se trata apenas de litígio entre os pais, pode tramitar na Vara de Família.
b) Destituição do poder familiar, perda ou modificação da tutela ou guarda Esta é uma das competências mais sensíveis, pois envolve o rompimento dos vínculos jurídicos entre pais e filhos. A destituição do poder familiar sempre tramita na Vara da Infância, sendo medida extrema e excepcional.
c) Suprimento de capacidade ou consentimento para casamento Embora o casamento seja possível excepcionalmente antes dos 16 anos (art. 1.520 do CC), o suprimento judicial deve ser processado perante a Vara da Infância.
d) Discordância paterna ou materna no exercício do poder familiar Esta é a alínea central do julgado do STJ. Aqui se incluem todos os pedidos baseados em divergência entre os genitores quanto ao exercício do poder familiar, desde que a discordância repercuta em direitos da criança ou adolescente. É nesta hipótese que se enquadra o suprimento de autorização para viagem internacional.
e) Emancipação Conceder a emancipação, nos termos da lei civil, quando faltarem os pais. A competência é residual, aplicável apenas quando não houver pais para conceder a emancipação voluntária.
f) Designação de curador especial Designar curador especial em casos de apresentação de queixa ou representação, ou de outros procedimentos judiciais ou extrajudiciais em que haja interesses de criança ou adolescente. Garante-se, assim, a representação adequada do infante em situações de conflito de interesses.
g) Ações de alimentos Conhecer de ações de alimentos. Embora alimentos também possam tramitar nas Varas de Família, quando envolver criança ou adolescente nas hipóteses do art. 98, a competência é da Vara da Infância.
h) Cancelamento, retificação e suprimento de registros Determinar o cancelamento, a retificação e o suprimento dos registros de nascimento e óbito. Esta competência é especialmente relevante em casos de sub-registro, adoção, reconhecimento de paternidade socioafetiva, entre outros.
A competência absoluta da Vara da Infância: fundamentos legais
A competência prevista no art. 148 do ECA reveste-se de natureza absoluta, por se tratar de competência vinculada à matéria diretamente afeta à proteção da criança e do adolescente. Isso significa que:
- Não se sujeita a modificações decorrentes de convenção das partes ou critérios de foro (art. 62, CPC)
- Pode ser reconhecida de ofício pelo juiz em qualquer tempo e grau de jurisdição
- Gera nulidade absoluta de sentença proferida por juízo incompetente
- Decorre da matéria (ratione materiae), em razão da especialidade da jurisdição protetiva infantojuvenil
A especialização da Justiça da Infância e Juventude não é mera questão de organização judiciária, mas verdadeira garantia fundamental das crianças e adolescentes, assegurando que suas demandas sejam apreciadas por magistrados e equipe técnica especializados em direitos infantojuvenis.
O entendimento do STJ: REsp 2.062.293-DF e a alínea “d”
No julgamento do REsp 2.062.293-DF, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do caso, enfrentou diretamente a seguinte questão: a ausência de situação de risco prevista no art. 98 afastaria a competência da Vara da Infância nos casos da alínea “d” do parágrafo único do art. 148?
A resposta foi categórica: não.
Segundo o acórdão, ainda que inexista situação de risco ou ameaça direta à integridade física ou psicológica da criança, tal circunstância não é suficiente para afastar a competência do Juizado da Infância e Juventude quando o pedido se fundamentar em discordância no exercício do poder familiar que repercuta em direitos da criança.
O raciocínio é técnico e preciso:
A negativa de um dos genitores em autorizar a viagem internacional, quando não fundada em justificativa plausível, configura óbice ao exercício de direitos fundamentais da criança, como:
- Direito à convivência familiar (art. 227, CF)
- Direito ao lazer e à cultura (art. 227, CF)
- Direito à liberdade de locomoção
- Direito ao desenvolvimento integral
Portanto, o que define a competência não é a presença de situação de risco do art. 98, mas sim a necessidade de resguardar direitos fundamentais previstos na Constituição e no ECA. A proteção integral exige que o Judiciário atue preventivamente, e não apenas de forma reativa ou corretiva.
Diferenciando: competência da Vara da Infância x Vara de Família
Um ponto que gera enorme confusão em provas — e erros fatais em segunda fase — é a distinção entre os pedidos que são de competência da Vara da Infância e aqueles que podem tramitar perante as Varas de Família. Vamos sistematizar:
Competência da Vara da Infância
Sempre competente:
- Atos infracionais e medidas socioeducativas
- Adoção e destituição do poder familiar
- Medidas de proteção do art. 101 do ECA
- Ações civis públicas sobre direitos infantojuvenis
- Fiscalização de entidades de atendimento
- Suprimento de autorização para viagem internacional (conforme REsp 2.062.293-DF)
Competente nas hipóteses do art. 98 (situação de risco):
- Guarda e tutela (quando houver risco ou violação de direitos)
- Alimentos (quando configurada situação do art. 98)
- Regulamentação de visitas (quando envolver proteção da criança)
Competência da Vara de Família
Regra geral:
- Divórcio e dissolução de união estável
- Fixação de alimentos entre os pais
- Partilha de bens
- Regulamentação de guarda e visitas em litígios exclusivamente entre os genitores, sem situação de risco
O critério diferenciador fundamental: quando a questão envolve proteção direta de direitos da criança ou adolescente, a competência é da Vara da Infância; quando se trata de litígio patrimonial ou pessoal entre os pais, pode tramitar na Vara de Família.
Quadro comparativo para memorização
| Situação | Competência |
| Guarda + situação de risco (art. 98) | Vara da Infância |
| Guarda litigiosa entre pais (sem risco) | Vara de Família |
| Suprimento autorização viagem internacional | Vara da Infância (absoluta) |
| Regulamentação de visitas + risco (art. 98) | Vara da Infância |
| Regulamentação de visitas (litígio simples) | Vara de Família |
| Alimentos + situação de risco (art. 98) | Vara da Infância |
| Alimentos (sem risco) | Vara de Família |
| Destituição do poder familiar | Vara da Infância (sempre) |
| Adoção | Vara da Infância (sempre) |
Conexão direta com concursos públicos
Esse tema já foi explorado em diversas provas de Magistratura, Ministério Público e Defensoria, especialmente em questões que exigem a distinção entre competência absoluta e relativa, a correta aplicação do ECA e o domínio das hipóteses do art. 148.
Vamos testar seu conhecimento com uma questão elaborada no estilo dos grandes concursos:
QUESTÃO SIMULADA
Maria e João são pais de Pedro, criança de 8 anos. Maria deseja viajar com Pedro para a Europa durante as férias escolares, mas João se recusa a fornecer autorização para a viagem, alegando que a criança não deveria perder aulas de natação. Não há qualquer indício de risco à integridade física ou psicológica de Pedro, tampouco situação de vulnerabilidade familiar prevista no art. 98 do ECA. Maria ajuíza pedido de suprimento judicial de autorização perante a Vara de Família. Considerando o entendimento do STJ no REsp 2.062.293-DF, assinale a alternativa correta:
A) O pedido deve ser julgado pela Vara de Família, pois não há situação de risco prevista no art. 98 do ECA que justifique a atuação da Vara da Infância e Juventude.
B) A competência é da Vara da Infância e Juventude, em caráter absoluto, por se tratar de discordância no exercício do poder familiar que repercute em direitos da criança, independentemente de configuração das hipóteses do art. 98 do ECA.
C) A competência é relativa, podendo ser prorrogada se ambos os genitores concordarem com a tramitação na Vara de Família, em homenagem aos princípios da economia processual e da celeridade.
D) A ausência de situação de risco torna desnecessária a intervenção judicial, devendo a mãe buscar solução consensual em sede de mediação familiar extrajudicial.
E) O pedido deve ser julgado pela Vara de Família, aplicando-se subsidiariamente o Código Civil nos casos em que não há vulnerabilidade, conforme doutrina da situação irregular ainda aplicável.
GABARITO: B
Explicação:
A alternativa B está correta porque, conforme decidido pelo STJ no REsp 2.062.293-DF, a competência da Vara da Infância e Juventude é absoluta para julgar pedidos de suprimento de autorização parental para viagem internacional, independentemente da existência de situação de risco prevista no art. 98 do ECA. O fundamento está no art. 148, parágrafo único, alínea "d", do ECA, que estabelece competência para conhecer de pedidos baseados em discordância no exercício do poder familiar quando isso repercutir em direitos da criança ou adolescente. A negativa injustificada de autorização obsta o exercício de direitos fundamentais (convivência familiar, lazer, cultura, liberdade de locomoção), justificando a atuação da jurisdição especializada. O STJ foi claro ao afirmar que a ausência de situação do art. 98 não afasta a competência quando se trata da hipótese da alínea "d", pois a proteção integral exige atuação preventiva, e não apenas reativa.
A alternativa A está incorreta porque adota interpretação equivocada do parágrafo único do art. 148, condicionando todas as suas hipóteses à configuração do art. 98. Embora o caput do parágrafo único mencione "quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do art. 98", o STJ entendeu que, para a alínea "d", essa exigência é flexibilizada pela própria natureza da discordância no poder familiar, que sempre repercute em direitos da criança. Além disso, aplica a ultrapassada doutrina da situação irregular, contrariando a doutrina da proteção integral consagrada pelo ECA.
A alternativa C está incorreta porque a competência absoluta não admite prorrogação, nem mesmo por acordo das partes (art. 62, CPC). A natureza da competência decorre da matéria (ratione materiae) e da especialização da jurisdição protetiva infantojuvenil, sendo indisponível.
A alternativa D está incorreta porque a intervenção judicial é necessária e legítima sempre que houver discordância no exercício do poder familiar que afete direitos da criança, sendo dever do Estado assegurar proteção integral. A jurisdição voluntária não se confunde com ausência de interesse processual, e o Judiciário não pode se eximir de solucionar conflitos que obstaculizam direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
A alternativa E está incorreta, primeiro, porque menciona a doutrina da situação irregular como "ainda aplicável", quando na verdade foi completamente superada pela doutrina da proteção integral desde 1990. Segundo, porque mesmo na ausência de vulnerabilidade, a competência continua sendo da Vara da Infância quando se trata de discordância que repercute em direitos infantojuvenis, conforme expressamente decidido pelo STJ. A aplicação subsidiária do Código Civil não altera a competência absoluta estabelecida pelo ECA.
Esse domínio completo das hipóteses de competência do art. 148 do ECA, combinado com a compreensão da evolução jurisprudencial trazida pelo STJ, é o que diferencia candidatos medianos dos aprovados. Não basta decorar o rol — é preciso entender a lógica da proteção integral e saber aplicá-la nas situações-limite que as bancas adoram cobrar.
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