* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
A juíza Elaine Christina Alencastro Veiga Araujo, da 10ª vara Cível de Goiânia/GO, proferiu decisão proibindo o iFood de cobrar taxa mínima para os pedidos. O fundamento foi que a cobrança se caracteriza como “venda casada”.
A sentença determinou a eliminação gradativa da necessidade de valor mínimo para a compra em restaurantes cadastrados no aplicativo. Houve também a condenação do iFood ao pagamento de R$ 5,4 milhões a título de dano moral coletivo. Esse valor será revertido ao Fundo Estadual de Defesa do Consumidor.
A iniciativa partiu do Ministério Público de Goiás, que ajuizou uma ação civil pública (ACP) para apurar a suposta venda casada pela plataforma.
Antes do ajuizamento da ACP, o próprio Ministério Público, em conjunto com a Defensoria Pública do Estado de Goiás e o Ministério Público Federal, expediu recomendação ao iFood para que a plataforma eliminasse a exigência de valor mínimo. Isso permitiria que os consumidores adquirissem produtos independentemente do preço.
Porém, não houve o atendimento da recomendação, o que levou o parquet ao ajuizamento da ação. Tentativas de acordo foram realizadas, mas sem sucesso, o que levou o processo a ser sentenciado.
Defesa do iFood
1º) O iFood começa a defesa levantando a questão da ilegitimidade ativa do Ministério Público. Segundo a empresa, o pedido da lide não se enquadraria no objeto da ação civil pública, não se identificando no rol dos direitos indisponíveis.
2º) A plataforma alegou que atua apenas como intermediadora entre consumidores e os restaurantes, e que não impõe a exigência do pedido mínimo. Assim, ela deixa essa decisão a critério dos próprios estabelecimentos cadastrados.
3º) Defendeu, ainda, que a existência de um valor mínimo para pedidos tem por objetivo garantir a viabilidade econômica da operação. Disse ainda que a plataforma disponibiliza diversas opções de estabelecimentos sem exigência de pedido com valor mínimo, assegurando a liberdade de escolha ao consumidor.
4º) Por fim, o iFood foi incisivo em negar o dano moral coletivo. Isso porque, segundo a plataforma, os consumidores não são forçados a utilizar o aplicativo e podem recorrer a outros meios para realizar compras.
Fundamentos da condenação
Ilegitimidade ativa
1º) A juíza afastou a alegação de ilegitimidade ativa do Ministério Público. A legitimidade do parquet para a propositura de ação civil pública é aplicável a quaisquer interesses de natureza transindividual. Portanto, para seu reconhecimento, basta a demonstração da relevância social da questão, o que é evidente no caso.
A lide ora analisada transcende os interesses individuais do indivíduo específico que originou a reclamação perante o Ministério Público, pois a eventual procedência da ação irá impor reflexos significativos para toda a coletividade de consumidores que utilizam o mencionado serviço ofertado, independente desta base de consumidores ser, ou não, numerosa.
O risco de dano tem potencial para atingir um grupo significativo de consumidores, o que atrai a noção de relevância social.
Cadeia de consumo
2º) Também não procede a alegação de que são os restaurantes que fazem a cobrança de pedido mínimo, em vez do iFood. A parte é a fornecedora, no mínimo, do sistema que se imputa a suposta prática abusiva; logo, faz parte da denominada cadeia de consumo, razão pela qual deve responder solidariamente pelos eventuais danos causados.

Proteção dos direitos coletivos
3º) É perfeitamente possível a proteção dos direitos coletivos, de forma coesa e sem concorrência, entre o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a Lei da Ação Civil Pública, em verdadeiro diálogo das fontes.
Foi sobre essa perspectiva que surgiu o denominado processo estrutural, sendo que “Para a adequada resolução dos litígios estruturais, é preciso que a decisão de mérito seja construída em ambiente colaborativo e democrático, mediante a efetiva compreensão, participação e consideração dos fatos, argumentos, possibilidades e limitações do Estado em relação aos anseios da sociedade civil adequadamente representada no processo” [REsp n. 1.854.842/CE, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/6/2020, DJe de 4/6/2020].

Responsabilidade objetiva
4º) A responsabilidade objetiva no Código de Defesa do Consumidor é um dos pilares da proteção ao consumidor, dispensando a comprovação de culpa e focando na existência de dano e nexo causal entre o serviço defeituoso e o prejuízo sofrido.
Não há, portanto, necessidade de comprovação de culpa ou dolo por parte da plataforma, já que se está diante de uma relação de consumo. Isso atrai a responsabilidade objetiva, garantindo a proteção dos direitos do consumidor de forma eficiente e rápida sem precisar provar a culpa do fornecedor.
Neste sentido, o artigo 14, do Código de Defesa do Consumidor:
CDC Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
A responsabilidade objetiva estabelecida pelo CDC se baseia na teoria do risco do empreendimento (ou teoria do risco da atividade), que preconiza que aquele que aufere os benefícios da atividade econômica deve suportar os ônus dela decorrente, facilitando assim o acesso à justiça e a reparação integral dos danos.

Venda casada
5º) A cobrança de pedido mínimo pela plataforma se caracteriza como venda casada, o que veda o art. 39, I, do Código de Defesa do Consumidor.
CDC Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

Segundo a literalidade do CDC, é possível condicionar o fornecimento de um produto/serviço a outro, desde que haja justa causa, o que não é o caso da cobrança de pedido mínimo.
Segundo a juíza, poderia se ventilar a hipótese de justa causa quando o estabelecimento oferecesse frete grátis. Isso porque, nesse caso, a concessão de um benefício poderia justificar a exigência de um valor mínimo para validar a operação.
Dano moral coletivo
6º) Tratando-se de uma infração a direito transindividual, lesionando a própria integridade de uma coletividade, justifica-se a responsabilização pelo dano moral coletivo. Esse é um mecanismo voltado à proteção de direitos de um grupo específico (consumidores), pois se verificou a afronta aos direitos fundamentais de milhares de consumidores que utilizam a plataforma diariamente.
A condenação em danos morais coletivos tem natureza eminentemente sancionatória, com parcela pecuniária arbitrada em prol de um fundo, não se identificando com aqueles tradicionais atributos da pessoa humana (dor, sofrimento, abalo etc.), mas com a violação injusta e intolerável de valores fundamentais titularizados por determinado grupo, tendo a função essencial de proporcionar uma reparação indireta à lesão de um direito extrapatrimonial, sancionar o ofensor e inibir condutas ofensivas futuras a esses direitos transindividuais.
Modulação dos efeitos
Com base em todos esses argumentos jurídicos acima indicados, a juíza julgou a ACP procedente, declarando a abusividade da cobrança de valor mínimo por pedido, com a consequente nulidade da cláusula contratual.
O aplicativo deverá proceder a uma progressiva redução do valor mínimo do pedido, até que seja totalmente abolido, além de pagar R$5,4 milhões à título de danos morais coletivos, a ser revertidos ao Fundo Estadual do Consumidor – Fundo Estadual de Defesa do Consumidor.
Tema quente para provas de direitos do consumidor!